domingo, 29 de março de 2015

Convenções


Não sei o que acontece com as numerações de roupas e sapatos hoje em dia, mas o certo é que está ocorrendo um problema imenso: ou a população está aumentando de tamanho ou as roupas e sapatos estão sendo feitos para pigmeus desnutridos.
Durante muito tempo sofri com o maldito rodízio de carros. Sempre deixei o dia do rodízio para ir visitar sítios e fazendolas fora de São Paulo, assim conseguia sair de madrugada, bem antes do início do horário da proibição absurda e voltar antes do início do horário da tarde. Só que muitas vezes isso não dava certo e eu acabava tendo de fazer hora em algum lugar pelas estradas.
E foi num desses dias que fui parar num shopping na Castelo Branco, com cerca de três horas para matar naquele lugar.
Lembro-me de que o shopping não era muito grande, sequer possuía um cinema, portanto comecei com uma visita ao toalete com direito a um “banho de gato” com lencinhos perfumados a fim de camuflar o cheiro de estábulo, bem como prender o cabelo novamente, passar um batonzinho e lá se foram 15 minutos. Em seguida, sentei-me numa lanchonete e fiz uma farta e demorada merenda. Contudo, comendo sozinha, sem falar com ninguém, quão demorado pode ser um lanche? Outros 15 minutos! E agora? O que fazer para matar as 2 horas e meia que restavam? Comprar um livro e começar a lê-lo? E assim saí andando, olhando as vitrines e tentando me lembrar se precisava de meias, talvez roupa ou acessório para alguma festa iminente, ou seria um presente?  Quem faz aniversário este mês mesmo?
O certo é que passei muitas vezes pelas mesmas lojas e acabei parando na frente de uma de sapatos masculinos hipnotizada por um par que passariam bem por um Oxford feminino. E esse com certeza teria do meu tamanho! Além de ser a metade do preço do similar feminino! Será que alguém perceberia que se tratava de um exemplar masculino?
Fui tomar um café para pensar no assunto, quando surgiu outro problema: como pedir o sapato e experimentá-lo já que se eu comprasse sem prová-lo e não servisse iria ficar complicado voltar lá tão cedo para trocá-lo, visto que meu trabalho para aquelas bandas já havia terminado.
- Oi, moço, tem número 39? E 40? Que cores? Aceita cartão?
Agradeci e saí da loja. Cadê a coragem?
Mas menina e aquele papo de que você não pode se deixar levar pela opinião dos outros? De que quem paga suas contas é você e por isso não deve satisfações a ninguém? Cadê a bandeira agora? E os anos de terapia? E aí? Vai amarelar mesmo?
Rodopiei nos calcanhares e voltei na loja, irrompendo segura de que nada nem ninguém poderia impedir a compra.
- O senhor me traz um 39 e um 40 desse aqui? Preto.
Sem nem olhar para o lado, sentei-me, tirei minhas botas sujas de barro e fiquei esperando para experimentar os sapatos. Só então me dei conta que estava com meias cheias de carrapicho de capim e respingadas de lama e algo mais, que levantava um cheiro característico de chulé com bosta de vaca.
Meu Deus! E agora? Sair correndo? Comprar sem experimentar como se fosse um presente? Mas eu já estava descalça e o homem já estava voltando com os sapatos.
Não dava mais tempo para qualquer reação a não ser encarnar o papel de que tudo aquilo era perfeitamente normal e dentro do script. Assim, tirei as meias grossas, calcei os sapatos novinhos e com a cara mais deslavada optei por um dos tamanhos.
Enquanto o vendedor foi fechar a compra, lentamente vesti as meias sujas, as botas enlameadas, olhando em volta com o rabo do olho. Aparentemente, ninguém havia prestado atenção ao que estava acontecendo comigo. Graças a Deus! Rapidamente, fui pagar a conta esticando a mão com o cartão, sem nem olhar para a moça do caixa. Só ao sair da loja que vi as pelotas de barro e a mancha de lama que ficou no carpete da loja.
Já fora do lugar, o coração a mil como quando aprontava escondida dos pais, nada importava mais, pois havia comprado o calçado e vencido todas as convenções sociais impostas.
É claro que o sapato ficou um tempão guardado no armário, já que comprá-lo numa loja desconhecida, com um vendedor anônimo foi até fácil, mas exibí-lo em público já seriam outros quinhentos!
Eis que um dia surgiu uma oportunidade para usá-lo numa reunião familiar, assim o mico, se houvesse, ficaria em casa. E o melhor de tudo é que minha irmã, a patrulheira da moda, que sempre me mede de cima a baixo, não iria.
A fim de tirar a atenção dos sapatos, caprichei no cabelo, na maquiagem, no colar e brincos e fui.
Como a vida não facilita muito quando é para nos ensinar, foi exatamente a minha irmã que abriu a porta da casa da minha prima. Seu outro compromisso havia sido desmarcado e ela resolveu aparecer na reunião familiar.
Após me olhar de cima a baixo, parou nos meus sapatos.
- Sapatos novos?
- É.
- Onde você comprou?
- Numa lojinha no interior.
- Bonitos. Gostei.
A verdade é que apesar dos meus esforços para tirar a atenção do meu sapato, eles acabaram sendo muito comentados e elogiados. Lógico que nunca contei que eram masculinos. E depois disso, comprei outros pares, bem como camisas masculinas, que ficam um charme com jeans.

Exibo todos os artigos com garbo e quando me perguntam onde comprei logo penso: sabe de nada inocente! 

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