Não
sei o que acontece com as numerações de roupas e sapatos hoje em dia, mas o
certo é que está ocorrendo um problema imenso: ou a população está aumentando
de tamanho ou as roupas e sapatos estão sendo feitos para pigmeus desnutridos.
Durante
muito tempo sofri com o maldito rodízio de carros. Sempre deixei o dia do
rodízio para ir visitar sítios e fazendolas fora de São Paulo, assim conseguia
sair de madrugada, bem antes do início do horário da proibição absurda e voltar
antes do início do horário da tarde. Só que muitas vezes isso não dava certo e
eu acabava tendo de fazer hora em algum lugar pelas estradas.
E
foi num desses dias que fui parar num shopping na Castelo Branco, com cerca de
três horas para matar naquele lugar.
Lembro-me
de que o shopping não era muito grande, sequer possuía um cinema, portanto
comecei com uma visita ao toalete com direito a um “banho de gato” com lencinhos
perfumados a fim de camuflar o cheiro de estábulo, bem como prender o cabelo
novamente, passar um batonzinho e lá se foram 15 minutos. Em seguida, sentei-me
numa lanchonete e fiz uma farta e demorada merenda. Contudo, comendo sozinha,
sem falar com ninguém, quão demorado pode ser um lanche? Outros 15 minutos! E
agora? O que fazer para matar as 2 horas e meia que restavam? Comprar um livro
e começar a lê-lo? E assim saí andando, olhando as vitrines e tentando me
lembrar se precisava de meias, talvez roupa ou acessório para alguma festa
iminente, ou seria um presente? Quem faz
aniversário este mês mesmo?
O
certo é que passei muitas vezes pelas mesmas lojas e acabei parando na frente
de uma de sapatos masculinos hipnotizada por um par que passariam bem por um
Oxford feminino. E esse com certeza teria do meu tamanho! Além de ser a metade
do preço do similar feminino! Será que alguém perceberia que se tratava de um exemplar
masculino?
Fui
tomar um café para pensar no assunto, quando surgiu outro problema: como pedir
o sapato e experimentá-lo já que se eu comprasse sem prová-lo e não servisse
iria ficar complicado voltar lá tão cedo para trocá-lo, visto que meu trabalho
para aquelas bandas já havia terminado.
-
Oi, moço, tem número 39? E 40? Que cores? Aceita cartão?
Agradeci
e saí da loja. Cadê a coragem?
Mas
menina e aquele papo de que você não pode se deixar levar pela opinião dos
outros? De que quem paga suas contas é você e por isso não deve satisfações a
ninguém? Cadê a bandeira agora? E os anos de terapia? E aí? Vai amarelar mesmo?
Rodopiei
nos calcanhares e voltei na loja, irrompendo segura de que nada nem ninguém
poderia impedir a compra.
-
O senhor me traz um 39 e um 40 desse aqui? Preto.
Sem
nem olhar para o lado, sentei-me, tirei minhas botas sujas de barro e fiquei
esperando para experimentar os sapatos. Só então me dei conta que estava com
meias cheias de carrapicho de capim e respingadas de lama e algo mais, que
levantava um cheiro característico de chulé com bosta de vaca.
Meu
Deus! E agora? Sair correndo? Comprar sem experimentar como se fosse um
presente? Mas eu já estava descalça e o homem já estava voltando com os
sapatos.
Não
dava mais tempo para qualquer reação a não ser encarnar o papel de que tudo
aquilo era perfeitamente normal e dentro do script. Assim, tirei as meias
grossas, calcei os sapatos novinhos e com a cara mais deslavada optei por um
dos tamanhos.
Enquanto
o vendedor foi fechar a compra, lentamente vesti as meias sujas, as botas
enlameadas, olhando em volta com o rabo do olho. Aparentemente, ninguém havia
prestado atenção ao que estava acontecendo comigo. Graças a Deus! Rapidamente, fui
pagar a conta esticando a mão com o cartão, sem nem olhar para a moça do caixa.
Só ao sair da loja que vi as pelotas de barro e a mancha de lama que ficou no
carpete da loja.
Já
fora do lugar, o coração a mil como quando aprontava escondida dos pais, nada
importava mais, pois havia comprado o calçado e vencido todas as convenções
sociais impostas.
É
claro que o sapato ficou um tempão guardado no armário, já que comprá-lo numa
loja desconhecida, com um vendedor anônimo foi até fácil, mas exibí-lo em
público já seriam outros quinhentos!
Eis
que um dia surgiu uma oportunidade para usá-lo numa reunião familiar, assim o
mico, se houvesse, ficaria em casa. E o melhor de tudo é que minha irmã, a
patrulheira da moda, que sempre me mede de cima a baixo, não iria.
A
fim de tirar a atenção dos sapatos, caprichei no cabelo, na maquiagem, no colar
e brincos e fui.
Como
a vida não facilita muito quando é para nos ensinar, foi exatamente a minha irmã
que abriu a porta da casa da minha prima. Seu outro compromisso havia sido
desmarcado e ela resolveu aparecer na reunião familiar.
Após
me olhar de cima a baixo, parou nos meus sapatos.
-
Sapatos novos?
-
É.
-
Onde você comprou?
-
Numa lojinha no interior.
-
Bonitos. Gostei.
A
verdade é que apesar dos meus esforços para tirar a atenção do meu sapato, eles
acabaram sendo muito comentados e elogiados. Lógico que nunca contei que eram
masculinos. E depois disso, comprei outros pares, bem como camisas masculinas,
que ficam um charme com jeans.
Exibo
todos os artigos com garbo e quando me perguntam onde comprei logo penso: sabe
de nada inocente!
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