segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Chupa-cabra

Outro dia estava me lembrando de fatos ocorridos nos meus tempos de roça. Dentre os vários causos, guardo com carinho os fantásticos, de assombrações.
Não me lembro com exatidão de quando aconteceu este, já que o tempo anda se embaralhando para mim, mas sei que foi bem na época do surgimento da lenda do chupa-cabra, que era um ser meio bicho, meio gente, com corpo escamoso, olhos grandes, dois pequenos chifres e dentes caninos enormes para chupar todo o sangue de sua vítima.
O fato é que por essa época começou a aparecer galinhas e pequenos animais mortos, aparentemente sem sangue e com apenas dois furos no pescoço. Lógico que fui chamada para dar minha opinião e sempre consegui achar uma razão plausível para as mortes, com exceção de um caso.
Havia na região uma propriedade dita mal assombrada. Segundo a rádio fofoca local, ou seja, as conversas no boteco e mercearia do seu Zé Coveiro, moravam na casa um casal sem filhos, onde ele trabalhava no roçado e ela cuidava dos afazeres domésticos. Como a casa não tinha luz elétrica, depois do jantar, os dois iam para a sala para ouvir o velho rádio de pilhas enquanto ela se punha a bordar sentada numa cadeira de balanço e ele pitava um cigarrinho de palha debruçado na janela. Com o passar dos anos, a senhora morreu e como o senhor se recusou a sair da casa, um sobrinho veio morar com ele. É claro que o sobrinho trouxe modernidade e assim reformou a casa, instalou luz elétrica e começou um negócio de granja, criando frangos para abate, o que propiciou a contratação de empregados que acabaram por morar no sítio também.
Não raro os empregados diziam ver a senhora balançando em sua cadeira e ouvir barulhos estranhos na casa, criando assim a fama de casa mal assombrada.
Certo dia bem cedo recebi o telefonema do rapaz e quando cheguei lá vi mais de 350 animais mortos. Todos tinham dois furos no pescoço e aparentemente não tinham nenhum sangue no corpo. 
De pé no meio do galpão comecei a procurar uma resposta para aquela cena. É claro que foi um ataque de algum predador e com essas características o mais provável seria um ataque de um bando de morcegos, mas era preciso identificar por onde eles entraram. Por isso comecei a inspecionar o galpão a fim de encontrar frestas, buracos, fendas, por onde eles poderiam ter passado. Entretanto o galpão era milimetricamente fechado a fim de impedir a entrada de outras aves, sobretudo andorinhas e rolhinhas, evitando a contaminação da criação. A única porta de entrada e saída era completamente vedada a fim de impedir a entrada de ratos, contudo ao examiná-la melhor vi marcas, como de unhas ou garras que arranharam toda a sua superfície pelo lado de fora. Fora isso, cada olhada ao redor acabava com alguma esperança de explicação.
A história já tinha corrido como rastilho de pólvora por toda região e antes mesmo do almoço, já havia uma multidão na porta do galpão a fim de ver o ocorrido para criar sua própria versão do causo.
De forma muito incômoda eu era a autoridade ali e todos me fitavam esperando o veredito.
Desta vez o embate entre a crendice e a ciência estava difícil, de maneira que recolhi algumas aves mortas e mandei para análise na USP. Assim ganharia por baixo uns 15 dias para dar alguma resposta e teria tempo para investigar melhor o ocorrido.
Só que a vida sempre apronta comigo e cerca de 2 ou 3 dias depois tive de voltar à propriedade por conta do surto de diarreia dado nas novas aves que substituíram as mortas e enquanto estava lá uma chuva torrencial despencou alagando a única saída do sítio. Como a água não baixava e a noite já havia caído, vi-me obrigada a pernoitar na casa mal assombrada.
Lá tudo era simples, limpo, mas sem os cuidados e toques femininos. Logo depois do jantar, sentamo-nos na sala a fim de prosear um pouco a respeito dos últimos acontecimentos e um barulho, como uma leve pancada ritmada, começou, mas os donos da casa não pareceram se incomodar.
- Esse barulho ... vem de onde? 
- Ah, a gente já desistiu de procurar. A verdade é que esse barulho só aparece neste horário e aparentemente não tem causa. A gente já nem liga mais.
Assim que decidimos ir dormir o barulho parou.
Já instalada numa cama de campanha no meio da sala, pensei ouvir uma voz feminina me desejar boa noite, mas como o cansaço era muito não dei importância e logo apaguei. Lá pelas tantas, acordei com um silvo, quase um uivo, horripilante, que acordou o resto da casa também.
Desta vez todos haviam ouvido o estranho grito e de pronto os funcionários estavam batendo à porta para formarem um grupo de caça ao chupa-cabras.
Logo alguns vizinhos também apareceram e num instante dois grupos de cinco ou seis homens, munidos de lanternas, paus, armas de fogo e facões, saíram à caça daquilo ou de quem ninguém nunca viu.
Fazia frio, a chuvinha fina não dava trégua e algumas mulheres e eu ficamos providenciando café quente e alguma coisa para dar de comer aos homens quando voltassem.
Logo que terminamos de montar a mesa e nos sentamos na sala para esperar pelos caçadores, a pancada ritmada voltou. Enquanto a mulherada falava sem parar e ao mesmo tempo sobre todos os assuntos possíveis, fui tentando seguir o barulho até que cheguei à conclusão de que ele vinha da parede onde a cadeira de balanço estava encostada. Será que havia algum cano de água? Cabo de energia elétrica? Num impulso inexplicável puxei a cadeira até do lado do sofá, mas não consegui me sentar nela.
Já estava amanhecendo quando os homens voltaram de mãos abanando. Graças a Deus, aquela noite infernal havia acabado!
Naquele mesmo dia à tarde a terra tremeu porque uma pedreira próxima explodiu uma série de cavernas, matando centenas de morcegos, constituindo um crime ambiental sem precedentes. Acontece que depois disso, não houve mais nenhum ataque do chupa-cabra. Além disso, o laudo da USP foi inconclusivo e o barulho ritmado parou desde que a cadeira foi desencostada da parede e colocada ao lado do sofá onde podia balançar sem bater em nada...



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