Outro dia estava
me lembrando de fatos ocorridos nos meus tempos de roça. Dentre os vários
causos, guardo com carinho os fantásticos, de assombrações.
Não me lembro com
exatidão de quando aconteceu este, já que o tempo anda se embaralhando para
mim, mas sei que foi bem na época do surgimento da lenda do chupa-cabra, que
era um ser meio bicho, meio gente, com corpo escamoso, olhos grandes, dois
pequenos chifres e dentes caninos enormes para chupar todo o sangue de sua vítima.
O fato é que por
essa época começou a aparecer galinhas e pequenos animais mortos, aparentemente
sem sangue e com apenas dois furos no pescoço. Lógico que fui chamada para dar
minha opinião e sempre consegui achar uma razão plausível para as mortes, com
exceção de um caso.
Havia na região
uma propriedade dita mal assombrada. Segundo a rádio fofoca local, ou seja, as
conversas no boteco e mercearia do seu Zé Coveiro, moravam na casa um casal sem
filhos, onde ele trabalhava no roçado e ela cuidava dos afazeres domésticos.
Como a casa não tinha luz elétrica, depois do jantar, os dois iam para a sala
para ouvir o velho rádio de pilhas enquanto ela se punha a bordar sentada numa
cadeira de balanço e ele pitava um cigarrinho de palha debruçado na janela. Com
o passar dos anos, a senhora morreu e como o senhor se recusou a sair da casa,
um sobrinho veio morar com ele. É claro que o sobrinho trouxe modernidade e
assim reformou a casa, instalou luz elétrica e começou um negócio de granja,
criando frangos para abate, o que propiciou a contratação de empregados que
acabaram por morar no sítio também.
Não raro os
empregados diziam ver a senhora balançando em sua cadeira e ouvir barulhos
estranhos na casa, criando assim a fama de casa mal assombrada.
Certo dia bem
cedo recebi o telefonema do rapaz e quando cheguei lá vi mais de 350 animais
mortos. Todos tinham dois furos no pescoço e aparentemente não tinham nenhum
sangue no corpo.
De pé no meio do
galpão comecei a procurar uma resposta para aquela cena. É claro que foi um
ataque de algum predador e com essas características o mais provável seria um
ataque de um bando de morcegos, mas era preciso identificar por onde eles
entraram. Por isso comecei a inspecionar o galpão a fim de encontrar frestas,
buracos, fendas, por onde eles poderiam ter passado. Entretanto o galpão era
milimetricamente fechado a fim de impedir a entrada de outras aves, sobretudo
andorinhas e rolhinhas, evitando a contaminação da criação. A única porta de
entrada e saída era completamente vedada a fim de impedir a entrada de ratos,
contudo ao examiná-la melhor vi marcas, como de unhas ou garras que arranharam
toda a sua superfície pelo lado de fora. Fora isso, cada olhada ao redor
acabava com alguma esperança de explicação.
A história já
tinha corrido como rastilho de pólvora por toda região e antes mesmo do almoço,
já havia uma multidão na porta do galpão a fim de ver o ocorrido para criar sua
própria versão do causo.
De forma muito
incômoda eu era a autoridade ali e todos me fitavam esperando o veredito.
Desta vez o
embate entre a crendice e a ciência estava difícil, de maneira que recolhi
algumas aves mortas e mandei para análise na USP. Assim ganharia por baixo uns
15 dias para dar alguma resposta e teria tempo para investigar melhor o
ocorrido.
Só que a vida
sempre apronta comigo e cerca de 2 ou 3 dias depois tive de voltar à
propriedade por conta do surto de diarreia dado nas novas aves que substituíram
as mortas e enquanto estava lá uma chuva torrencial despencou alagando a única
saída do sítio. Como a água não baixava e a noite já havia caído, vi-me
obrigada a pernoitar na casa mal assombrada.
Lá tudo era
simples, limpo, mas sem os cuidados e toques femininos. Logo depois do jantar,
sentamo-nos na sala a fim de prosear um pouco a respeito dos últimos
acontecimentos e um barulho, como uma leve pancada ritmada, começou, mas os
donos da casa não pareceram se incomodar.
- Esse barulho
... vem de onde?
- Ah, a gente já
desistiu de procurar. A verdade é que esse barulho só aparece neste horário e
aparentemente não tem causa. A gente já nem liga mais.
Assim que
decidimos ir dormir o barulho parou.
Já instalada numa
cama de campanha no meio da sala, pensei ouvir uma voz feminina me desejar boa
noite, mas como o cansaço era muito não dei importância e logo apaguei. Lá
pelas tantas, acordei com um silvo, quase um uivo, horripilante, que acordou o
resto da casa também.
Desta vez todos
haviam ouvido o estranho grito e de pronto os funcionários estavam batendo à
porta para formarem um grupo de caça ao chupa-cabras.
Logo alguns
vizinhos também apareceram e num instante dois grupos de cinco ou seis homens,
munidos de lanternas, paus, armas de fogo e facões, saíram à caça daquilo ou de
quem ninguém nunca viu.
Fazia frio, a
chuvinha fina não dava trégua e algumas mulheres e eu ficamos providenciando
café quente e alguma coisa para dar de comer aos homens quando voltassem.
Logo que
terminamos de montar a mesa e nos sentamos na sala para esperar pelos
caçadores, a pancada ritmada voltou. Enquanto a mulherada falava sem parar e ao
mesmo tempo sobre todos os assuntos possíveis, fui tentando seguir o barulho
até que cheguei à conclusão de que ele vinha da parede onde a cadeira de
balanço estava encostada. Será que havia algum cano de água? Cabo de energia
elétrica? Num impulso inexplicável puxei a cadeira até do lado do sofá, mas não
consegui me sentar nela.
Já estava
amanhecendo quando os homens voltaram de mãos abanando. Graças a Deus, aquela
noite infernal havia acabado!
Naquele mesmo dia
à tarde a terra tremeu porque uma pedreira próxima explodiu uma série de
cavernas, matando centenas de morcegos, constituindo um crime ambiental sem
precedentes. Acontece que depois disso, não houve mais nenhum ataque do
chupa-cabra. Além disso, o laudo da USP foi inconclusivo e o barulho ritmado
parou desde que a cadeira foi desencostada da parede e colocada ao lado do sofá
onde podia balançar sem bater em nada...
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