segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Cenas cotidianas

Espero o sinal de pedestre abrir para poder atravessar a rua. Do lado oposto vejo uma mulher subindo a via falando ao celular tão absorta que tropeçou num desnível da calçada, mas nem assim largou o aparelho.
Do ponto pouco abaixo parte o ônibus que vai subindo paralelamente à aluada do celular para dobrar a esquina logo a seguir.
E não é que a infeliz, distraída , rindo ao celular, não respeitou o sinal de pedestres fechado e seguiu em frente literalmente se jogando na frente do ônibus? Morte instantânea!
Do meu lado da rua seguro o grito e assisto impotente à cena toda.

Pela filmagem de uma câmera de segurança vejo dois homens entrarem armados numa pizzaria.
Logo em seguida um rapaz, distraído por sua conversa ao celular, vem andando pela mesma rua. Ao passar pela porta da pizzaria, provavelmente ouviu as ameaças dos ladrões e parou com o celular na mão, atônito, aluado, usando seus últimos segundos para tentar entender o que acontecia ali. Não deu tempo! Morreu com um balaço.  

Através da janela do ônibus parado no semáforo, vejo no carro ao lado duas mocinhas com os vidros escancarados a fim de amenizar o calor do verão. Uma delas, a passageira, falava ao celular intermediando a conversa entre a motorista e quem quer que seja que estivesse do outro lado da linha.
Uma moto com dois homens para ao lado e o garupa tira um revólver de dentro da jaqueta, apontando para a moça e exigindo o celular. Nisso o ônibus arranca e só ouço o estampido do tiro.


Começo a ter saudades do primeiro telefone que apareceu lá em casa: preto, pesadão, com um disco central e ligado à tomada por um cabo revestido de pano também preto. Este só matava se jogado contra a cabeça de alguém. 

Chupa-cabra

Outro dia estava me lembrando de fatos ocorridos nos meus tempos de roça. Dentre os vários causos, guardo com carinho os fantásticos, de assombrações.
Não me lembro com exatidão de quando aconteceu este, já que o tempo anda se embaralhando para mim, mas sei que foi bem na época do surgimento da lenda do chupa-cabra, que era um ser meio bicho, meio gente, com corpo escamoso, olhos grandes, dois pequenos chifres e dentes caninos enormes para chupar todo o sangue de sua vítima.
O fato é que por essa época começou a aparecer galinhas e pequenos animais mortos, aparentemente sem sangue e com apenas dois furos no pescoço. Lógico que fui chamada para dar minha opinião e sempre consegui achar uma razão plausível para as mortes, com exceção de um caso.
Havia na região uma propriedade dita mal assombrada. Segundo a rádio fofoca local, ou seja, as conversas no boteco e mercearia do seu Zé Coveiro, moravam na casa um casal sem filhos, onde ele trabalhava no roçado e ela cuidava dos afazeres domésticos. Como a casa não tinha luz elétrica, depois do jantar, os dois iam para a sala para ouvir o velho rádio de pilhas enquanto ela se punha a bordar sentada numa cadeira de balanço e ele pitava um cigarrinho de palha debruçado na janela. Com o passar dos anos, a senhora morreu e como o senhor se recusou a sair da casa, um sobrinho veio morar com ele. É claro que o sobrinho trouxe modernidade e assim reformou a casa, instalou luz elétrica e começou um negócio de granja, criando frangos para abate, o que propiciou a contratação de empregados que acabaram por morar no sítio também.
Não raro os empregados diziam ver a senhora balançando em sua cadeira e ouvir barulhos estranhos na casa, criando assim a fama de casa mal assombrada.
Certo dia bem cedo recebi o telefonema do rapaz e quando cheguei lá vi mais de 350 animais mortos. Todos tinham dois furos no pescoço e aparentemente não tinham nenhum sangue no corpo. 
De pé no meio do galpão comecei a procurar uma resposta para aquela cena. É claro que foi um ataque de algum predador e com essas características o mais provável seria um ataque de um bando de morcegos, mas era preciso identificar por onde eles entraram. Por isso comecei a inspecionar o galpão a fim de encontrar frestas, buracos, fendas, por onde eles poderiam ter passado. Entretanto o galpão era milimetricamente fechado a fim de impedir a entrada de outras aves, sobretudo andorinhas e rolhinhas, evitando a contaminação da criação. A única porta de entrada e saída era completamente vedada a fim de impedir a entrada de ratos, contudo ao examiná-la melhor vi marcas, como de unhas ou garras que arranharam toda a sua superfície pelo lado de fora. Fora isso, cada olhada ao redor acabava com alguma esperança de explicação.
A história já tinha corrido como rastilho de pólvora por toda região e antes mesmo do almoço, já havia uma multidão na porta do galpão a fim de ver o ocorrido para criar sua própria versão do causo.
De forma muito incômoda eu era a autoridade ali e todos me fitavam esperando o veredito.
Desta vez o embate entre a crendice e a ciência estava difícil, de maneira que recolhi algumas aves mortas e mandei para análise na USP. Assim ganharia por baixo uns 15 dias para dar alguma resposta e teria tempo para investigar melhor o ocorrido.
Só que a vida sempre apronta comigo e cerca de 2 ou 3 dias depois tive de voltar à propriedade por conta do surto de diarreia dado nas novas aves que substituíram as mortas e enquanto estava lá uma chuva torrencial despencou alagando a única saída do sítio. Como a água não baixava e a noite já havia caído, vi-me obrigada a pernoitar na casa mal assombrada.
Lá tudo era simples, limpo, mas sem os cuidados e toques femininos. Logo depois do jantar, sentamo-nos na sala a fim de prosear um pouco a respeito dos últimos acontecimentos e um barulho, como uma leve pancada ritmada, começou, mas os donos da casa não pareceram se incomodar.
- Esse barulho ... vem de onde? 
- Ah, a gente já desistiu de procurar. A verdade é que esse barulho só aparece neste horário e aparentemente não tem causa. A gente já nem liga mais.
Assim que decidimos ir dormir o barulho parou.
Já instalada numa cama de campanha no meio da sala, pensei ouvir uma voz feminina me desejar boa noite, mas como o cansaço era muito não dei importância e logo apaguei. Lá pelas tantas, acordei com um silvo, quase um uivo, horripilante, que acordou o resto da casa também.
Desta vez todos haviam ouvido o estranho grito e de pronto os funcionários estavam batendo à porta para formarem um grupo de caça ao chupa-cabras.
Logo alguns vizinhos também apareceram e num instante dois grupos de cinco ou seis homens, munidos de lanternas, paus, armas de fogo e facões, saíram à caça daquilo ou de quem ninguém nunca viu.
Fazia frio, a chuvinha fina não dava trégua e algumas mulheres e eu ficamos providenciando café quente e alguma coisa para dar de comer aos homens quando voltassem.
Logo que terminamos de montar a mesa e nos sentamos na sala para esperar pelos caçadores, a pancada ritmada voltou. Enquanto a mulherada falava sem parar e ao mesmo tempo sobre todos os assuntos possíveis, fui tentando seguir o barulho até que cheguei à conclusão de que ele vinha da parede onde a cadeira de balanço estava encostada. Será que havia algum cano de água? Cabo de energia elétrica? Num impulso inexplicável puxei a cadeira até do lado do sofá, mas não consegui me sentar nela.
Já estava amanhecendo quando os homens voltaram de mãos abanando. Graças a Deus, aquela noite infernal havia acabado!
Naquele mesmo dia à tarde a terra tremeu porque uma pedreira próxima explodiu uma série de cavernas, matando centenas de morcegos, constituindo um crime ambiental sem precedentes. Acontece que depois disso, não houve mais nenhum ataque do chupa-cabra. Além disso, o laudo da USP foi inconclusivo e o barulho ritmado parou desde que a cadeira foi desencostada da parede e colocada ao lado do sofá onde podia balançar sem bater em nada...



Se beber, não se deite!

O corpo principia a acordar, assim como a consciência começa a retornar, embora eu ainda estivesse de olhos fechados.
Caraca! Que dor de cabeça! Meu Deus! Que quarto é esse? Isso, Karin, enche o latão de tudo que é bebida e agora quero ver. Ou melhor, não quero nem ver!
Caramba! Quem é esse aí do lado? Cadê as roupas dele? Ai meu Deus! Cadê minhas roupas? Puta que o pariu!  Será que rolou alguma coisa? Não me lembro de nada! Assim sem me mexer muito começo a olhar em volta à procura das minhas roupas.
Já pensou se o cara acorda e eu tô assim?
Ui! Jesus me abana! Mas que bundinha, hein? Pena que não lembro de nada... será que vou lembrar?
Vixe, tá virando pra cá! Por favor, Deus, que ele não acorde, que ele não acorde! Não vou saber o que falar, o que fazer!
E fiquei quietinha, de olhos fechados, esperando o que viria a seguir.
Ufa! Tá dormindo!
Olho aquele rosto tentando buscar na memória saber quem era. Nada! Nem uma pista! Mas o cara é bonitão, rosto quadrado, barba de uns dois dias, peito com pelos. Sim porque homem sem barba e sem cabelo no peito convenhamos que é moleque ainda. Será que eu olho mais para baixo? Quando eu ia me imaginar pelada na cama com um estranho também pelado? Meu Deus! Como isso foi acontecer?
Espio com o rabo do olho. Nossa! Deve estar precisando ir ao banheiro porque se não for isso ... Caraca! Como não me lembro de nada?! Disso eu ia me lembrar! Ah se ia!  
Bom, no conjunto da obra penso que me dei bem porque o rapaz não é de se jogar fora. Logo me vem à mente a musiquinha: Moreno alto, bonito e sensual / Talvez eu seja a solução dos seus problemas / Carinhoso, bom nível social...
E agora? Saio correndo? Espero ver o que vai rolar? Afinal, pelada na cama com um cara também pelado falando do tempo é que a gente não ficou! Será que foi bom?  Camisinha! A porra da camisinha! Ai meu Deus! Tomara que um dos dois tenha sido responsável. Ele, né? Porque eu nem me lembro como vim parar aqui. Dizem que Deus protege os bêbados e as criancinhas... Ô de cima, conto com vc!
Já sentada na cama acho minhas roupas jogadas no chão entre o banheiro e a cama. Vou puxando devagarzinho uma das cobertas para me enrolar e assim ir pegando minhas roupas no chão. Afinal de contas só faltava o estranho acordar e dar de cara comigo na posição em que Napoleão perdeu a guerra!
Quando chego na porta do banheiro – nossa! – que fedor! O banheiro estava vomitado de fio a pavio! Daí que a visão desse inferno começou a avivar a minha memória: esse bolçado todo era meu!
Ai agora tá ficando mais claro! Festa da Leia, vim sozinha, combinada de encontrar com a Deinha na festa. É isso! A filha da mãe não apareceu, liguei, liguei e nem me atendeu! Já ia embora porque não conhecia ninguém quando a Leia resolveu me apresentar para algumas pessoas. Chaaaatas! Gente esquisita para caramba!
- Não vai embora, hein? – pediu-me a anfitriã. Assim fui ficando e bebendo, bebendo e bebendo. Ah, o barman era bonitão e fazia cada drinque! Pera! Como era a cara dele mesmo? Será que esse cara aí é o barman?
Nossa! Mas que lugar é este? Lembrei! Esse cara é o barman! A gente saiu da festa e veio para outra festa numa mansão, com um portão de ferro enorme e seguranças. Entramos pelos fundos, procurando pelo, pelo ... Marcos. Ou seria Mário? Não importa! Só pode ser aqui!
Nossa, que complicado! Como a gente veio parar neste quarto? Meu Deus! Será que tinha uma terceira pessoa aqui? Um ménage? Não! Nem em coma alcoólico eu toparia isso! Não pode ser!
Assim, fechei-me no banheiro e com a mangueirinha do chuveiro comecei a lavar tudo para poder usar.
Que delícia de ducha! Era tudo que eu precisava! Depois de uma xícara de café bem forte aposto que minha memória volta! Mas primeiro vou sair de mansinho deste lugar.
O grande problema é que a ideia do ménage não me saía da cabeça! Já ter feito sexo com um completo estranho era muito constrangedor, pensar num ménage então... Melhor ir embora rapidinho!
Nem bem abro a porta do banheiro e dou de cara com aquele monumento de pé, acordado.
-Você ainda está aqui?
- É, pois é. Mas já estou indo embora...
E coçando o saco ele retrucou:
- Você estava doidona ontem! Entrou aqui feito uma louca, botou os bofes para fora no banheiro, já saiu de lá arrancando as roupas e se enfiando na cama...
- É?
- Você não se lembra de nada, né?
- Olha, para dizer a verdade não. Você é o barman?
- Não!
- Não?! Cadê o barman?
- Sei lá! Já deve ter ido embora.
- Ai meu Deus! Eu não fiz isso! Eu não me lembro!

Completamente em pânico, saí correndo e agora nem queria mais me lembrar de nada... 

Presente Terapêutico

Depois de um ano todo num grupo de terapia, chegou o fim do ano e o clima de festas, levando a um fatídico amigo secreto.
É claro que depois de sete ou oito meses de terapia em conjunto já sabíamos ou deveríamos saber muito uns sobre os outros.
Na verdade a realidade não é bem assim. É incrível como cada um ouve aquilo que quer ou que pode. Isso me lembra de Paulo em uma de suas cartas aos Coríntios, onde ele diz que devemos ter cuidado com o que falamos e sempre imprimir nas palavras nossas melhores intenções e sentimentos, mas que temos de ter consciência de que quem vai ouvir, as ouvirá de acordo com os sentimentos que traz em seu coração.
Grande conhecedor da alma humana esse Paulo! As cartas dele são verdadeiros ensinamentos de bem viver e conviver. Basta esquecer o divino, o religioso, o fantástico, atrelado a seus escritos.
Daí que o dia chegou e cada um foi entrando com seu pacote de presente e seu pratinho de doce ou salgado para a confraternização. Engraçado como todos estavam meio apreensivos. Curiosamente todos tiveram dificuldades para comprar o presente e a terapeuta, mais rodada nessas experiências que catraca de ônibus, começou a sessão justamente pela troca de presentes.
Minha amiga secreta era uma cearense arretada, que tinha passado fome na infância, foi dada a uma família para ser criada, depois devolvida para a avó e por fim mandada para servir de babá de uma sobrinha, filha da irmã mais velha que já morava numa favela aqui em Sampa.
Hoje ela é casada com um homem rico, que vive de administrar a herança de vários imóveis recebidos de uma tia, sem precisar de um emprego formal. Com três filhos que faziam o que queriam, sem limites, e um marido viciado em cocaína que levou o filho mais velho para o vício, ela buscava forças para enfrentar sua vida.
É incrível como só o convívio descortina meandros que desconhecemos à primeira vista e ao final de alguns meses a vítima se torna vilão e vice-versa.
Que figura era a Ivone! Ivonilde na verdade. Não fazia o tipo perua faminta, pelo contrário, era cheinha, com curvas boas, cabelos longos e negros, além dos peitos siliconados que sempre ameaçavam pular fora dos tomara-que-caia habituais.
Apesar da situação econômica confortável ela se vestia como essas moças de periferia, com calças que pareciam costuradas no corpo ou saias que eram quase um mero abajur de perereca, além dos saltos sempre altíssimos, de preferência do tipo agulha.
Já eu era mais desleixada com meu modo de vestir do que agora e a minha preferência sempre foi por roupas confortáveis, mais do que tudo. Então, os jeans e camisetas básicas, além dos tênis eram uma constante.
E é aí que entra Paulo e sua observação da natureza humana porque eu acabei ganhando uma blusa horrorosa, super decotada na frente e que me deixava as costas toda de fora. Jamais usaria aquilo! Onde a Ivone estava com a cabeça por me dar uma blusa dessas? Que louca!
- Você não gostou, né?
- É bem diferente do que estou acostumada a usar, mas gostei sim. Agora no calorão de janeiro vai ser ótima!
Claro que na minha ideia aquela era a última sessão do ano, depois viriam 2 meses de férias e até fevereiro todos teriam se esquecido dos presentes.  Assim, a blusa ficaria esquecida em algum canto de gaveta até a limpa anual onde seria doada sem uso para algum bazar de caridade.
Ledo engano, pois assim que as sessões recomeçaram fui cobrada pelo uso da blusa.
- Você usou a blusa? Não gostou, né?
E foram tantas as cutucadas que tive de usá-la uma vez para ir à reunião.  Só que ao chegar lá, a roupa era tão incômoda, tão nada a ver comigo, que acabei falando na sessão.
- Mas se você tivesse me falado no dia, eu poderia ter trocado para você...
No final o episódio rendeu e acabei aprendendo muito a meu respeito, principalmente sobre a minha necessidade de agradar aos outros a qualquer preço e a minha incapacidade de dizer não.
Já a Ivone percebeu o quanto ela não ouvia e via os outros, vivendo num mundo próprio para fugir de seus problemas.  

Quanto à blusa, acabou nas mãos da filha da minha faxineira que precisava de uma roupa maneira para o baile funk do fim de semana. 

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Relacionamentos

Há algum tempo o tema amor na maturidade vem me rodeando, quer seja como comentário de um conto lido em classe, quer seja em conversas que surgem do nada em rodas de amigos. Seria talvez um indício de que precisaria parar para pensar nisso? A vida faz dessas comigo. Quando um tema se torna recorrente, aparecendo por várias fontes, sei que é hora de parar e prestar atenção.
Assim rapidamente me vem à mente a história do pai da Tomoko, um senhor japonês de 96 anos, viúvo, que vivia sozinho num apartamento com uma acompanhante e auxiliar de enfermagem. Homenzinho ligeiro, fazia suas próprias compras, contas de cabeça, discutia política e não se esquecia de nada. E não é que um belo dia o porteiro do prédio dele chama a Tomoko para uma conversa?
- Dona Tomoko, a senhora precisa falar com seu pai. O pessoal do prédio já está reclamando...
- O que está acontecendo Seu Raimundo?
- Olha, nem sei como dizer, mas seu pai anda assanhado. A senhora sabe, né? O prédio tem câmera em todo lugar, no elevador...
- Assanhado?! Como assim, Seu Raimundo? Meu pai tem 96 anos!
- Pois não parece, Dona Tomoko! Olha, não sei falar dessas coisas pra senhora, não. Vou dar as fitas pra senhora, a senhora assiste e depois pelo amor de Deus, resolve essa parada para mim!
            E a Tomoko assistiu as fitas e não acreditou no que viu: o pai, supostamente um idoso à beira da morte, além do tempo regulamentar da vida, foi filmado várias vezes fazendo sexo no elevador com a acompanhante, que também não era nenhuma jovenzinha. Tinha já lá seus 50 e tantos anos!
Quando foi interpelado, não negou nada e aproveitou para comunicar que iria se casar com ela. Como a família deu o contra, um mês depois fugiram para o Ceará, onde ela tinha família. Moram lá até hoje e o homem já vai fazer 100 anos!
Já que pensamento bom não é um só, mas vários, alinhavados de carreirinha, a seguir veio a lembrança de um filme, “Tinha que ser você”, que abordou bem esse assunto ao contar a história de um divorciado de meia-idade que acaba se encontrando por acaso com uma solteirona também de meia-idade, mostrando o medo de cada um em largar a própria zona de conforto em contraponto ao desejo de ter companhia, atenção. Mas o melhor vem nos extras do DVD, onde a atriz do filme, Emma Thompson, dá uma entrevista na qual diz: “Apaixonar-se quando se é mais velho é devastador. É coisa muito importante. Principalmente quando se acha que isso não vai acontecer mais.” E o diretor do filme completa dizendo que “o relacionamento de pessoas mais velhas é mais interessante. A mim não me interessa pessoas de 20 anos se apaixonando porque elas simplesmente não sabem se apaixonar...” Realmente o filme é lindo, aborda satisfatoriamente as crises e dúvidas diante do dilema e o final, embora sem surpresas, é o único possível numa situação como aquela.  
Tudo muito simples já que os filhos que existiam não criaram grandes empecilhos e os envolvidos eram livres e desimpedidos. Entretanto, fiquei pensando em como seria apaixonar-se estando preso a um casamento. E vou mais além: o que leva ao fim de um casamento depois de tantos anos, de tantas experiências vividas em comum? Não seriam exatamente essas experiências que tornariam os vínculos mais fortes? Quando se deixa de amar e vira acomodação?
Saio perguntando por aí e ouço alguns absurdos do tipo:
- Casei porque meus amigos casaram e todos tiveram casamentos ruins, chatos. Então achei que isso era o normal.
E apenas oito meses depois do inevitável divórcio este cidadão achou a mulher da vida dele. Torço para que sim, mas não consigo acreditar, já que não creio em amor à primeira vista. E os filhos? Como ficam nesse caldeirão?
- Ah, eles se acomodam! – foi a resposta que recebi.
Evidentemente o alinhavado continua e passa por mim, me obrigando a me olhar com lentes de aumento.
Ah, a Emma Thompson tem toda a razão: é devastador sim! A gente começa tateando com medo de perder a liberdade, prometendo não arredar pé daquilo que já se conquistou, não abrir mão de alguns princípios, e termina completamente abobado fazendo tudo aquilo que jurou nunca fazer.
Na idade madura o amor vem devagar, cultivado em pequenas gentilezas e cuidados. E quando já se passou por muitas experiências na vida a gente sabe o que quer do relacionamento: aplacar a solidão. Sim, a verdade é que a grosso modo o ser humano se junta para não ser sozinho, para saciar uma necessidade de pertencimento e quanto mais se caminha de olhos abertos pela vida, mais consciência disso se tem. Por isso lembro-me com candura do sorriso do meu marido diante das minhas condições para casar. Quase o ouço dizendo: “Sabe de nada, inocente!”
Lógico que não sabia, pois nunca fui casada. Contudo, ele sabia exatamente o que queria e soube conduzir a situação de forma elegante e paciente.
Acho que o grande segredo é não querer muito do outro ou da relação. Assim, por ter sido sempre o último da fila durante os 25 anos que ficou casado, hoje ele só quer ocupar o primeiro lugar e eu por ter sido sempre forte e independente, quase masculina, só quero ser menininha.
Como conseguimos entender e saciar a principal necessidade um do outro, todo o resto perde a importância e fica muito natural abrir mão daquilo que se jurou nunca largar, acabando com qualquer chance de cobrança posterior por isso.

Hoje o escurinho do cinema tem um sabor diferente já que lá sou a namoradinha e ele é o centro das atenções e o filme... Ah, esse pouco importa! 

domingo, 3 de agosto de 2014

Marginais

- Ué, você não estava torcendo pela Alemanha?
-Estava.
-E tá chorando por quê?
-Porque não precisava ganhar de goleada, né?
Assim é o coração do imigrante, seja ele de qual idade ou qual geração for.
A gente vive dividido e na verdade acaba sendo um ser apátrida, que não esquece a terra natal, seus bons costumes, seus melhores sons e odores, mas que também se rende ao novo, ao acolhimento, ao rompimento com crenças que a nova cultura lhe traz.
Esse tipo de liberdade, de nova visão sobre o certo e errado, do permitido e do proibido, ao mesmo tempo arrebata e assusta porque se perde a noção de limites.
Já não sei o que responder hoje em dia quando me perguntam se isto ou aquilo é certo. Jamais replico diretamente e tal qual um terapeuta returco com outra pergunta o que leva meu interlocutor às raias da loucura!
Todavia aprendi que o conceito de certo e errado, bem e mal, positivo e negativo são bem relativos, já que palitar os dentes em público é perfeitamente aceitável na Itália e um ato de grosseria na França, assim como na China cuspir na rua é um ato de higiene já que, segundo suas crenças, estariam tirando a sujeira do corpo.
Então como fazer? Que limites aceitar para viver? O ser humano é um ente que precisa de regras, que precisa de crenças, que precisa de barreiras que contenham sua bestialidade.
Entretanto ao conhecer novas culturas, novos mundos, novas gentes, vê-se que existe vida além do nosso umbigo. E se para um adulto é complicado, para as crianças é missão quase impossível!
Se por um lado é bom saber que existem outros modos de vida, por outro fica muito difícil se adaptar ao local onde se vive. Costuma-se dizer que viajar abre a mente e isso é verdade. Por outro lado, uma vez aberta, não há como voltar atrás e a adaptação aos costumes e tabus de alguns lugares pode ser muito difícil. Assim, acaba-se por viver num clã, marginalmente à cultura local. E aí cria-se outro problema que é conviver com o olhar espantado dos nativos. Este assunto tem sido recorrente em nossa mesa, às refeições, quando a família se une. Como dar limites a adolescentes? Fatos corriqueiros podem ser fonte de graves discussões, já que segundo a cultura brasileira pequenos delitos como dirigir depois de beber um quantidade mínima de álcool é permitido e já na terra natal nenhuma quantidade é tolerada.
A verdade é que essa abertura de mente nos faz olhar cada vez mais para nós mesmos e assim acabamos por criar um código de ética e crenças muito particular e subjetivo, surgindo assim nossos próprios limites. Além disso, a gente aprende a respeitar as diferenças, sem contudo nos sentirmos obrigados a incorporá-las se elas forem de encontro com nosso código de ética e desse modo, respeitamos os italianos palitando os dentes em público, mas nós não fazemos isso até porque nosso dentista não recomenda o uso de palito, só de fio dental. Com isso pautamos nossos hábitos mais no que nos diz a ciência do que no que é comum no lugar onde vivemos. E o que a ciência não pode direcionar, usamos o bom senso, o gosto próprio e as crenças aprendidas com nossos antepassados que decidimos manter.
- E por que você está torcendo pela Alemanha?
- Porque eles são os melhores. Trabalharam e treinaram muito para serem os melhores e merecem demais ganhar por isso.
Pronto! Parece que meu periquito tem aprendido bem os valores que damos importância: nada cai do céu.



sábado, 2 de agosto de 2014

Angústia


Pavor! Pavor insano mesmo! E agora? Calma. Primeiro procurar na folhinha a data e depois fazer contas. Meu Deus! Isso será muito azar! Isso não pode acontecer comigo! Não a esta altura da minha vida!
Triiiimmmm! Triiiimmmm!
Só me faltava essa! É ele! Parece que cheira as coisas!
- Oi.
- Oi. Nossa! Você está bem? Tá com uma cara...
- Cara de quê? É claro que estou bem! O que você quer?
- Ihhhh, TPM ainda? Melhor eu chamar outra hora?
- Não! Desculpe, ando dormindo mal. Tô cansada.
Três dias de atraso. Por que fui na conversa dele? Mas ele está operado já faz quase 1 ano! Deixa eu ver... nesse tempo ele passou a metade fora viajando, no início a gente continuou usando tabelinha e camisinha o que dá ... um puta azar se eu estiver grávida!
Filhos na minha idade? Minha coluna não aguenta, minha paciência menos ainda. Adeus viagens, adeus liberdade! Meu Deus me livra dessa! Calma, raciocina. Na sua idade é quase impossível! A taxa de fertilidade cai vertiginosamente. É, mas nunca atrasei na vida! E já está 3 dias atrasado. Ai que medo! Um alien dentro de mim!
Mais um dia amanhece, corro ao banheiro e ... nada! Ai que agonia! Chá de salsinha! Isso! Chá de salsinha faz descer. Chá de canela também! Ou era para cólicas? Na dúvida, chá de salsinha com canela!
Argh! Acho que vou vomitar! Coisa ruim demais!
Trimmmm! Trimmmm!
- Oi.
- Dormiu melhor? Cansada ainda?
- Tô melhor sim. O que você quer? Tava de saída.
- Saída?! Assim?
Puta que o pariu esqueci da câmera!
- Não! Estou atrasada, preciso me arrumar! Fala logo o que você quer!
- Nada em especial. Queria saber de você. Tô preocupado. Você está estranha. Não vai me dizer o que está acontecendo?
- Não está acontecendo nada! Muito trabalho, os problemas de sempre e insônia. Quando você volta?
- Depois de amanhã. Vou direto do aeroporto para a sua casa.
- Que horas você chega?
- Ainda não sei. Estou tentando um voo logo depois do almoço, senão só à noite.
O dia transcorreu normalmente, mas a agonia não sumia. Era só dar uma parada nos afazeres para ela voltar. Santo Deus, como na maturidade certas agonias são quase insuportáveis! Talvez a falta de experiência, a falta de saber exatamente o que se quer da vida, nos faça ser mais maleáveis e nos faça aceitar melhor as coisas. Neste momento da minha vida já não quero mais fazer limonadas com os limões que a vida por ventura me der.
Mais um dia e nada! À noite, já em casa, abro uma garrafa de vinho. Vinho, álcool, segundo a vovó era melhor que o chá. Entorno a garrafa toda, assim pelo menos me fará dormir. De manhã corro ao banheiro e mais uma vez nada!
Chega de agonia! O negócio é fazer logo um exame e acabar com isso. Ligo para o consultório do médico onde sou informada que consulta só para dali uns 15 dias, mas que conseguiria um encaixe no fim da semana seguinte. Desgraça! Até lá morrerei de angústia!
Hmmmm, mas o que é isto que estou sentindo? Uma cólica talvez? Que nada!
Que burrice! A vida inteira me controlando para não passar por essa angústia e agora depois de macaca velha me acontece isso?!
Teste de farmácia! Isso! Tudo bem que não são muito precisos, mas acho que dá para me acalmar ou não até a consulta.
- Bom dia, o senhor tem teste de gravidez?
- Temos sim. Ali naquela gôndola.
Ao chegar na tal gôndola quase choro: no mínimo meia dúzia de marcas diferentes. Por que a gente não pode simplesmente pegar um teste de gravidez? Unzinho só? Tem que ter opções? Numa hora destas tem como pensar nas opções?
- Posso ajudar?
Olho atônita para a funcionária da farmácia, uma mocinha de uns 18 no máximo 19 anos. Como ela poderia me ajudar? O que ela saberia para me ajudar?
- Eu... eu... não sei qual escolher ...
- Ah, simples. Não leva este porque ele falha. Para mim deu negativo, mas eu tava grávida. Esse aqui nunca usei, não sei. Olha, o que sempre uso e que dá certo é este. Pode levar. Pode confiar!
Meio trêmula peguei a caixinha da mão da moça e fiquei olhando-a.
- Menina, quantos filhos você tem?
- Nenhum. Era para eu ter uns quatro já, mas eu tiro todos. Sou muito nova para ser mãe.
Com essa perdi o rumo. Repentinamente não sabia nem onde estava, para onde ia.
- Senhora, mais alguma coisa?
- Nã-não!
- O caixa é ali então.
Em casa olho a caixa como quem fita um monolito, um oráculo que ditará o resto da minha vida. A bula quilométrica explica tudo, da rebimboca da parafuseta até o sexo dos anjos. Assim pulo as informações técnicas e passo para o que realmente interessa: que cor tem que ficar para ser negativo.
Pronto! Agora é só esperar sete minutos. Pego o timer da cozinha e ajusto o tempo, quando ouço a campainha. Quem será? Não estou esperando ninguém...
-Ué, você? Não vinha só amanhã?
- Terminei antes e vim. Não está contente em me ver?
- Não é isso. Você não está cansado? Não quer ir para a sua casa? Tomar um banho? Depois você vem. Na boa, agora estou terminando uma coisa, não esperava você hoje e não vou poder te dar atenção.
- Não posso entrar?
- Claro! Pode! Vem!
Meu Deus! E agora? Não queria que ele soubesse de nada. Não agora. Se der negativo, nem precisa saber. Se der positivo nem sei o que vou resolver. Aborto não encaro, mas ... Afe!
- Karin, o que está acontecendo?
- Nada!
- Pára com isso! Você acha que sou algum idiota? É claro que está acontecendo alguma coisa! Você está com outro?
Não acredito! Eu no meio de um problemão destes e ele está pensando que eu tenho outro?! Homens! Só pensam em sexo! Se eu sair desta nunca mais transo na vida! Ou melhor, nunca mais transo enquanto não estiver na menopausa!
- Anda, Karin, me fala! Quem é? Eu conheço?
- Você é um insensível, um ridículo! Vai embora! Não volta mais aqui!
E assim me tranco no banheiro aos prantos. O timer me assusta com sua campainha estridente. Olho o pedaço de plástico e graças a Deus está verde.
- Karin, abre! Que caixa é esta que estava sobre a mesa de jantar? Você está grávida? Como assim? Eu me operei!
Abrindo a porta aliviada, testo:
- E se estiver?
De olho arregalado ele responde:
- Para quem já tem seis o que é mais um? Mas como isso é possível? Eu me operei. Eu fiz todos os testes. A gente tomou cuidado nos primeiros meses ...
- Você acha que eu dormi com alguém?
- Não! ... Dormiu?
- Claro que não!

Mostro, então, o teste negativo e ele respira aliviado. 

sábado, 14 de junho de 2014

A senhora do castelo

            Depois de uma viagem longa, cheia de incertezas e sentimentos contraditórios, chego em casa. Na verdade minha nova casa, quiçá nova vida.  Abro a porta do apartamento com a cabeça cheia de pensamentos, de medos, de planos, de dúvidas. As últimas DRs via skype ainda ecoavam na minha mente e uma cobrança em particular ainda me incomodava muito: “Você não assume seu papel de minha esposa”. E assim eu me transformava na culpada pelos desatinos da ex, nosso maior motivo de dissabores.
            Que papel seria esse? Ali, parada no meio da sala, começo a olhar em volta e vejo que tudo ainda tinha o dedo dela e senti-me intrusa. É, é isso! Uma penetra que toma todo o cuidado para não chamar a atenção, para não atrapalhar, para não ser posta para fora da festa.
Num gesto automático, quase inconsciente, derrubo da mesinha o vaso de cristal, provável presente de casamento, que se parte em mil pedaços. Já na cozinha, abro a geladeira e me pergunto por que compramos aquela marca de água, sabão em pó, detergente, molho de tomate, se ele só descobriu o caminho da cozinha e adjacências comigo. Assim, num delírio louco, chamo a zeladora e abrindo os armários de comida da cozinha peço que ela leve tudo que havia dentro.
        - Tudo, senhora? – perguntava a incrédula imigrante romena já cinquentona. 
       - Sim, tudo! Só verifique a validade porque pode haver alguma coisa vencida.
Depois de um banho bem demorado, daqueles que nenhum europeu aprova, pego a cachorra e saio para uma volta, além de jantar. A cabeça ia longe, parte resolvendo que papel seria esse que deveria assumir e que consequências ele traria; parte resolvendo se queria mesmo assumí-lo.                  Como precisava ainda atravessar três longos dias até que ele chegasse, resolvi começar uma mudança externa, arrancando todos os resquícios dela da casa. Quem sabe assim, tornando-me efetivamente a senhora do castelo, conseguiria arrancá-la de nossas vidas.
            No dia seguinte bem cedinho pego a cachorra e saio para tomar café na rua. Propositalmente deixo apenas um recado para ele avisando que estava tudo bem e que iria sair sem celular porque havia me esquecido de carregar a bateria. O que mais adoro nos lugares civilizados é que minha fiel amiga pode me acompanhar a qualquer lugar e assim atravessamos a cidade de metrô até um tapeceiro para combinar a nova forração dos sofás, bem como cortinas novas. Com uma parada estratégica no centro comercial, compro roupas de cama, mesa e banho. Sinto o dia passar lento – ou eu é que estaria acelerada? – já que nem era hora do almoço ainda e eu já havia resolvido tantas coisas. Por isso, depois de um sanduíche de salsichão comido na rua mesmo, fui escolher papeis de parede novos e porque não um novo tapete para a sala?                   Chego em casa eufórica, querendo falar com alguém, querendo mostrar o que comprei, querendo compartilhar minhas ideias para revolucionar a casa, sem ter com quem. E como mágica o telefone toca: é ele! Nossa ligação mental, telepática, espiritual ou seja lá o que for é forte e embora o estivesse evitando até decidir o que eu realmente queria, ouvir a voz dele me trouxe saudades.  
                     Logo contei minhas peripécias com a casa e do telefone passei ao computador para mostrar através da câmera o que havia comprado e mais uma vez compartilhamos tudo através de uma máquina o que acabou me levando a um estado de frustração já que com as viagens constantes dele, nossa vida sempre acontece na telinha do computador, como uma novela da Rede Globo.
             O relógio marcava a parada do tempo como se Cronos quisesse compensar minha decepção com horas suficientes para encarar um supermercado antes do fim do dia.
                 Fui, embora sem muita vontade, mas ao me ver no mercado, como uma criança num parque de diversões, comprei marcas novas de tudo: do sabonete ao molho de tomate. Contudo o melhor foi o sentimento de satisfação perversa que se apoderou de mim.  Minha criança birrenta havia sido satisfeita! Ao chegar em casa caí na cama, exausta, mas muitíssimo vingada.
                   Mais um dia chegou e ainda de pijamas comecei a tirar tudo dos armários do quarto. Surpreendentemente acho coisas dela ainda. Roupas, uma caixa de fotos, um vidro de perfume, um guarda-chuva feminino, cartas de amor. Abro uma e leio até o fim. Pelo menos ele é criativo e não disse as mesmas coisas para mim. Sem conseguir ler o resto porque uma onda de ciúmes me tomou por completo, coloco as cartas de lado e furiosamente tiro tudo dos armários. Choro sentada no chão.
              A campainha toca providencialmente me obrigando a mudar o foco. De pé na porta dois deuses do olimpo que vieram buscar meus sofás. Tão logo eles saem, me visto e desço até o subsolo para lavar e secar tudo que havia comprado no dia anterior satisfazendo minha mania por limpeza e perfumes.
            Na medida em que ia caminhando pelo corredor mal iluminado até a lavanderia do prédio, fui ouvindo passos que fizeram meu coração acelerar. Quem seria? Um serial killer? Com uma corridinha, entrei e me escondi atrás da porta da lavanderia segurando o grito. Os passos pararam na porta e de onde estava vi a cabeça da zeladora esticada para dentro do recinto. Gargalhei nervosamente.
              - A senhora quer ajuda? – perguntou-me sem jeito.
               Estranhei o oferecimento e meu olhar deve ter me traído.
           - Desculpe, mas fui instruída a ajudar a nova senhora. Nada é da minha conta, mas a antiga senhora esteve aqui na semana passada, pediu-me a chave e entrou no apartamento. Não recebi instruções quanto a isso.
          Deixei-a lavando as roupas e fui atrás de um chaveiro.
             - A nova senhora sou eu. Aqui estão as novas chaves do apartamento. Eu vou ligar e dizer quem pode ter as chaves. Caso contrário, ninguém entra.
             Curioso como isso me trouxe um sentimento de poder descomunal. A tarde transcorreu arrastada como se o relógio estivesse preguiçoso, dando-me tempo mais que suficiente para selecionar o que colocar nos armários. Ao mexer nas roupas dele, senti o cheiro, o perfume dele e mais uma vez a saudade apertou. 
             Como sempre, como se me vigiasse, o telefone tocou bem nessa hora e tudo que ouvi ao atender foi: “estou com saudades de você”. Mais uma vez chorei deixando-o preocupado do outro lado da linha. Assim que desliguei fui ver o por do sol da minha janela saboreando um vinho. Entre um gole e outro fui pondo ordem nos meus pensamentos e sobretudo nos meus sentimentos o que me levou a perceber que já havia me decidido por comprar a briga e assumir meu papel. Ele já estava tão entranhado na minha vida que não era mais possível nos separarmos. E desta vez quem ligou fui eu e assim que ele atendeu eu disse: “quero você!” e agora quem chorou foi ele.
         O terceiro dia foi o pior de todos. Assim que detectei a insônia, desisti de brigar com ela e parti para trocar o papel de parede do quarto. Incrível as novidades que tornam o faça você mesmo cada vez mais fácil. Com um pano umedecido num líquido apropriado, soltei o papel velho e com uma cola super fácil colei o papel novo. Ao amanhecer havia trocado o papel de todas as paredes da casa bem como acabado com todo o café da dispensa.  
                    Misteriosamente minha coluna não reclamou e após um banho revigorante, saí com a cachorra para tomar café na rua.  A previsão de chegada dele era no fim da tarde o que me dava tempo para preparar a recepção. Passei no mercado, comprei guloseimas, ajeitei a casa, perfumei tudo, fiz comidinha, imaginei mil vezes como o receberia, como o encheria de beijos, como faria amor com ele.
            Tão logo o sol começou a baixar no céu ele tocou a campainha. Meu coração quase pulou pela boca. Abri a porta correndo e de pé vejo ele, bem mais magro, bem mais envelhecido, e ao beijá-lo senti a febre. E assim nossa primeira noite foi no hospital, no isolamento, com suspeita de gripe aviária, já que ele tinha acabado de chegar do oriente.
           - Vem, deita aqui comigo. Estou com saudades do seu perfume.
             E assim, apertados numa cama hospitalar, sentindo os braços dele em volta de mim, adormeci tranquila. Tudo estava no seu lugar. 

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A arte de cozinhar

                    Cozinhar é muito mais do que apenas seguir receitas, sendo uma arte como diz o clichê. Já dizia a minha mãe que o verdadeiro cozinheiro era aquele que era capaz de fazer uma refeição apetitosa com o que tinha na geladeira. Sim, claro! Mas acho que mesmo nessa situação tem que se ter o dom de saber como combinar os ingredientes para que resultem em quitutes saborosos.
                  Só quem cozinha sabe o quanto alimentar é divino e conhece o prazer que dá ver as pessoas se deliciando com a sua criação, por mais simples que ela seja.
              Talvez seja por isso que as mães de família continuem cozinhando apesar da falta de reconhecimento explícita. Afinal quem elogia diariamente a refeição feita com tanto carinho?
                     Tudo na minha vida chegou de forma inusitada e há alguns anos tive um grupo de amigas composto por uma viúva, duas separadas, duas solteironas e eu que se reunia uma vez por semana para fofocar e relaxar. Éramos todas donas de nossos próprios narizes e tínhamos uma vida profissional estressante. Já lá pela quarta-feira a troca de e-mails começava a bombar! Aonde iríamos na sexta, nosso dia de sbornia? E assim fazíamos nossa terapia anti-estresse em bares, restaurantes, compras no shopping, shows, teatro, sempre regado de muita conversa e risadas.
             Numa noite qualquer dessas estávamos num restaurante quando um senhor de sotaque português bem acentuado veio ser galanteador em nossa mesa. Normalmente a gente ria muito e botava o incauto para correr. Cada uma de nós tinha seu motivo para achar que nossos encontros eram mais interessantes que qualquer papo furado, qualquer cantada barata, mas o portuga era muito simpático e divertido e acabou jantando conosco.
                  Acontece que por esse tempo estava começando essa moda de padarias que não vendem apenas pão, mas que servem acepipes, pequenas refeições, guloseimas em geral e nós conseguimos como uma brincadeira, até mesmo um certo desafio, um patrocínio para experimentarmos as tais padarias “gourmet” de Sampa e fazermos uma crítica ou resenha sobre elas para um guia de alimentação que esse senhor português editava. Nossas reuniões de pauta eram divertidíssimas já que quase matávamos o coitado de desespero com a profusão de assuntos tratados ao mesmo tempo. Pertinentes ou não ao tema da pauta, nós discutíamos sobre tudo e todos tão rápido e numa lógica que só nós entendíamos e que o lusitano não conseguia nos acompanhar.
               A verdade é que nós mal pisávamos numa cozinha no nosso dia-a-dia e faltava-nos conhecimento e experiência para criticar, já que depois de umas 4 ou 5 visitas as resenhas estavam sem graça, superficiais, repetitivas. Daí que tive a ideia de tomarmos aulas de culinária. A Wal morava numa casa cinematográfica num condomínio às margens da Anhanguera e tinha uma cozinha gourmet à beira da piscina que nunca mais foi usada desde que ficou viúva. Com a anuência delas contratei um professor para ministrar as aulas aos domingos.
             Como eu não consigo ser séria escolhi como instrutor um estudante do último ano do curso de gastronomia do SENAC, um moreno alto, de 22 aninhos, musculoso, bundinha redondinha ... Até hoje me lembro da cara das minhas amigas ao vê-lo. E rio, rio muito!
               Nem preciso dizer que foram aulas divertidíssimas, principalmente depois que o professor descobriu que a gente ladrava, mas não mordia. Aí sim que ele relaxou e entrou na nossa brincadeira.
              Durante dois anos tivemos aulas onde aprendemos a diferenciar aromas, temperos, texturas e eu me descobri cozinheira passando a curtir reunir os amigos em casa para serem minhas cobaias, já que desenterrei os cadernos de receitas das minhas avós e da minha mãe. Isso me levou a mais uma viagem interior, uma vez que trouxe à tona lembranças de um tempo em que passava as férias escolares com minha avó fazendo panetones para o natal e pães para o dia-a-dia, o que fez voltar à memória cheiros e sensações há muito perdidos. Não é só música que nos traz lembranças, os aromas também!
                       O bom de saber cozinhar é que você aguça seus sentidos e um passeio pelo mercadão vira uma viagem por sensações. Ali tenho predileção pelas barracas de especiarias, pois afinal é o tempero que cria o prato. E assim como no filme Chocolate, a gente acaba seduzindo os comensais através do aroma, do tempero.
                     Seja como for, dominar as panelas abre portas, gera assunto, admiração, agrega pessoas, facilita abordagens, enfim, muitas coisas acontecem ao redor de uma mesa! Sem contar que por mais que as mulheres se tornem independentes e modernas, os homens ainda esperam que elas saibam cozinhar e assim ainda hoje é possível agarrar um marido pelo estômago!