domingo, 29 de março de 2015

Segurando o grito

Com a pilha de caixas da mudança já no meio da sala, despedi-me dos carregadores e fechei a porta do meu novo lar.
A cerração de início da noite parecia acentuar mais ainda o frio cortante de julho, fazendo-me ansiar por uma casa quentinha e adiando para o dia seguinte a inspeção dos limites da imensa propriedade. Para aquecer aquele projeto de lar ainda sem tapetes, cortinas e com tudo atulhado pelos cantos só mesmo acendendo um foguinho. Ademais, minhas mãos doíam de frio que parecia passar através da roupa até atingir meus ossos e congelá-los.
Essa era a minha terceira mudança nesse ano e a essa altura tudo havia sido empacotado a esmo, já que muitas caixas da mudança anterior nunca tinham sido abertas ou completamente desfeitas por falta de tempo ou espaço para guardar o que havia dentro.
O fato é que a primeira providência seria pegar madeira para acender a lareira e o fogão a lenha para esquentar a casa. Corri para o depósito que ficava embaixo do terraço. Como colocar a mão num lugar escuro que poderia ter algum bicho peçonhento? Agora morava sozinha literalmente no meio do mato, a 20 km da cidade e 5km do vizinho mais próximo. Portanto cuidar-me era essencial!
Tremendo de frio e tentando me lembrar de onde tinha posto a lanterna, fiquei parada um tempão na frente do depósito até que a sensação de que alguém ou algum bicho me espreitava encoberto pela cerração densa atrás de mim ficou insuportável. E agora? Corri para dentro de casa e me tranquei até os dentes, tentando ver através das venezianas o que havia lá fora.
Um silêncio tumular parecia piorar a situação, até que através da janela da sala vi uma família de gambás sair correndo do terraço e se perder no meio da neblina.
Ufa! Taí a assombração!
Como não achei a lanterna, mas achei velas, fui de novo ao depósito com uma que não adiantou muito, mas consegui ver que além das teias de aranha, não havia mais nada ou pelo menos nenhum olho de bicho brilhou com a claridade. Assim, fui puxando os tocos de madeira do meio, onde as aranhas não estavam e enchendo os cestos. Quando comecei a encher o quarto cesto escutei um som baixo, como um guincho abafado e uma pilha de madeira rolou para fora. Meu Deus! Tem um bicho aí! Correr? Será que não é pior? Ficar? E se for uma cobra? Vai me atacar com certeza!
Bem devagar fui me afastando, sentindo todos os pelos do meu corpo arrepiados. Assim que estava a uma distância que julgava segura, percebi que se corresse para casa iria passar um frio danado porque todos os cestos de lenha estavam ainda ali. Então, quase sem respirar, sentindo o coração na boca, fui me agachando lentamente até que vi um par de olhos brilharem no lusco-fusco da vela. Jesus! Que bicho é esse? Olhos muito grandes para ser uma cobra, cabeça muito chata para ser um roedor. O certo é que por longos 10 segundos, a criatura e eu ficamos nos encarando até que ela saiu correndo, rastejando, passando bem ao meu lado e sumindo na cerração. A escuridão associada à velocidade do animal e ao meu medo, só me deixaram ver um vulto preto rente ao chão.
Credo! Nessa hora senti até meus cabelos em pé!
- Meu Deus! Onde fui amarrar minha égua?! Perguntei enquanto carregava os cestos para dentro de casa.
Caramba! Chega de sair de casa no escuro! Essa lenha é suficiente para aquecer a casa enquanto arrumo o mínimo necessário para poder comer e dormir.
Tão logo cheguei perto da lareira pensei escutar uma movimentação. Claro! Já estava ouvindo até alma penada mesmo! Larguei a lareira e fui procurar meu aparelho de som que logicamente estava na última caixa que abri e que não continha os CDs.
Pronto! Com o rádio ligado na única estação que sintonizava, voltei para a lareira arrumando cuidadosamente a lenha entremeada de jornal para colocar fogo ao som de um pastor inflamado que pregava contra as armações do capeta. Três estadões de domingo depois, a casa estava cheia de fumaça e fogo que é bom, nada!
Se o cramulhão existisse mesmo, aquela seria uma boa hora para dar o ar da graça e me dar um pouco do fogo dos infernos.
E agora? Rapidamente abri a janela da sala, o basculante do banheiro e da cozinha e ao voltar para a lareira escuto três barulhos surdos de algo caindo pela chaminé. Quando olho, eram três morcegos intoxicados com a fumaça.
Bem zonzos, praticamente sem ar, eles se debatiam em meio à lenha e às cinzas de papel queimado, enquanto eu estava paralisada no meio da sala, já que tenho pavor de ratos e tudo que lembram eles. Afinal de contas, morcegos são ratos com asas. Num esforço hercúleo, consegui correr para a cozinha e me trancar lá.
Só quando me senti segura é que consegui raciocinar: tinha água e comida. Contudo, não tinha lenha, não tinha banheiro, não tinha cama, não tinha cobertor, não tinha sequer telefone e tinha muito frio. E agora? E se eles se enfiassem nos quartos ou mesmo no banheiro que estavam abertos? Ou nas caixas?
Com muito medo, pé ante pé, munida de uma vassoura e com o casaco cobrindo a cabeça fui olhar se eles ainda estavam na lareira. Que nada!
Socorro! Onde eles se enfiaram?
Daí que escutei o bater de asas de um deles e vi aquele monstro vindo em minha direção. Como eu era o único obstáculo entre ele e os quartos, tinha de pensar rápido e pensei! Abri a porta da frente e usando a vassoura como uma raquete, joguei o bicho para fora com um golpe certeiro. Força, Karin, que só faltam dois! Mal olhei em volta e vi os outros dois pendurados de cabeça para baixo na grade da janela da sala, bastando só fechar a janela. Entretanto, cadê a coragem de chegar tão perto assim? Primeiro corri fechar os quartos e banheiro, na esperança de que eles fossem embora sozinhos, mas que nada! O jeito era usar a vassoura, derrubando-os com um golpe e fechando a janela com outro. Teria de ser uma ação rápida, em dois movimentos, sem falhas. Mal fui chegando com a vassoura, os dois voaram para longe e eu consegui fechar a janela. Mas e se eles voltassem a entrar pela chaminé? Só havia um jeito: botar fogo a qualquer custo!
Completamente em pânico, abri uma lata de óleo de soja e derramei sobre os tocos de madeira, risquei o fósforo e vi a língua de fogo se espalhar pela lenha. Desta vez não houve fumaça, mas o cheiro do óleo queimado era quase insuportável.
Já completamente ensopada de suor, sentei-me no chão frio, em frente à lareira, pensando que já haviam se passado quase duas horas e eu ainda não tinha onde dormir, nem o que comer. Todavia já havia resolvido não acender o fogão a lenha. Vai saber que bicho poderia haver na sua chaminé!
Puxei uma caixa para perto de mim e comecei a olhar o que tinha dentro a procura de pratos, copos, panelas, mas achei as de roupas de cama.
Tão logo decidi a posição da cama no quarto, arrumei–a assustando-me com o estrondo do trovão. Chuva? Que delícia dormir com o barulhinho da chuva!
Finalmente achei as caixas da cozinha e me pus a fazer uma sopinha sob os clarões dos relâmpagos e o barulho dos trovões que pareciam estar cada vez mais próximos. Um vento forte assobiava ao encontrar as janelas e finalmente caiu a chuva, pesada, forte.
Naquela época o telefone era ainda de disco e possuía uma campainha estridente, tal qual um sinete. Quase derrubei o prato cheio de sopa que segurava quando o telefone tocou uma só vez, ao mesmo tempo que vi um clarão imenso através da janela. Que susto!
Ao levantar o fone do gancho, estava mudo. Que beleza! Agora só faltava acabar a luz!
Cansada das bobagens ditas pelo pastor evangélico no rádio, resolvi dar uma corridinha até o carro que estava estacionado na porta para pegar um CD e assim abri a porta e corri. Um pé lá e outro cá. Tão rápido que a chuva apesar de intensa praticamente não me molhou.
Pronto! Sonzinho maneiro, sopa quentinha e uma lareira aconchegante. O que mais eu poderia querer? Sentei-me no chão, próximo à lareira e comecei a degustar meu néctar quando pressenti que estava sendo observada. Bem devagar fui me virando para ver quem ou o quê estava me mirando. Nada!
Para, Karin, que você já está ficando paranoica!
Voltei para a minha refeição quando escutei um estampido como de um tiro dentro da sala. De novo não! O que será agora?
Novo estampido. Larguei o prato e corri para pegar a vassoura, mas assim que entrei na cozinha um trovão de arrasar quarteirão me assustou e logo em seguida a luz apagou. Instintivamente fechei a porta da cozinha. E agora? Sem luz, sem telefone, sem vizinhos... Quem chamar? Como saber quem ou o quê estava fazendo esse barulho?
A verdade é que sozinha, sem luz e com o silêncio sepulcral que fazia, comecei a perceber que cada vez que tinha um estampido na sala, outro “respondia” do lado de fora da porta da frente.
E de novo, pé ante pé, fui até a sala com uma vela acesa numa mão e a vassoura na outra. Olha daqui, olha dali e achei num canto um imenso sapo boi, preto, que logo tentou fugir assim que me aproximei. Ai que ódio desses bichos! Novamente com a vassoura em punho fui empurrando ele até a porta e quando a abri ele deu um salto enorme para fora.
Ufa! Cansei! Chega de emoções por hoje! Vou para cama!
Com certeza verifiquei as trancas, apaguei tudo que lembrava estar aceso antes de acabar a luz e me larguei na cama, de roupa e tudo, exausta.
Só que caipira de cidade sente falta do trânsito, dos buzinaços, dos carros com som alto, das gritarias nas ruas e aquele silêncio me incomodava, me fazia prestar atenção como que se procurasse um barulho familiar para embalar meu sono.
Num dado momento comecei a ouvir passos do lado de fora da casa que iam da porta de entrada até o lado oposto que era a porta da cozinha.
Tentei olhar pela veneziana do quarto, mas a chuva já havia dado trégua, assim como os raios que já não iluminavam mais a noite sem lua. Lá fora só o breu total.
Vai dormir, Karin, que você já está ouvindo coisas!
Quietinha, prestei atenção e não ouvi mais nada. Tá vendo, sua doida! Não é nada!
Relaxei, me ajeitei na cama e quando já ia me entregar senti que mexeram na porta da cozinha. Num pulo já estava na porta do quarto procurando pela chave para trancá-la. Cadê? Só aí me dei conta de que nenhuma das portas internas tinha chave. Sem pensar muito, puxei a cama e a encostei no vão entre o armário e a porta, mas ainda dava para abrir uma fresta suficiente para alguém enfiar uma mão armada.
Diante disso desabei e comecei a chorar quando senti que os passos haviam parado debaixo da minha janela e logo depois começou um barulho de roçar, com leves batidinhas, como se alguém estivesse tentando abrir a pesada veneziana de madeira. Claro que engoli o choro! Maldita hora que decidi vir morar aqui!
Com o coração na boca, as veias do pescoço pulsando de medo, escutei os passos darem a volta na casa e irem forçar a porta da sala.
Comecei a rezar. A esta hora, sem luz, telefone, vizinhos, parentes, só Deus mesmo! E os passos voltaram para a porta da cozinha. Mais atenção e senti que eram passos pesados, lentos e ritmados e ao voltarem a passar sob a minha janela consegui vislumbrar um vulto preto, esquisito. Seria um gordo baixinho andando agachado?
Bom, o que fazer? Esperar a casa ser invadida? Atacar de surpresa?  Graças a Deus não tirei a roupa para dormir, assim se morresse iam me achar vestida decentemente.
O medo começou a se tornar raiva. Raiva da situação, raiva da ousadia de alguém infligir esse medo em mim, raiva de eu ter de machucar alguém para me defender.
E irada comecei a por em prática meu plano. Primeiro desencostei a cama tentando fazer o mínimo de barulho possível, depois fui silenciosamente até a cozinha e peguei o rolo de macarrão de madeira.
Com o pesado pau de macarrão em punho, fui até a sala, abri a porta e aguardei escondida que o ladrão entrasse por ela, assim eu poderia golpeá-lo, de preferência na cara, em cheio. Um único golpe, como uma martelada de abate de bois.

Foram segundos intermináveis, escutando os passos se aproximarem e pararem na soleira da porta. E agora? E se ele não entrar? Outros segundos intermináveis sentindo a presença dele parado, sem conseguir enxergar nada. O que fazer? Elemento surpresa! Isso!  Agora é tudo ou nada! Vou pular na frente dele berrando como um ninja para assustá-lo e logo em seguida meto o rolo na cara dele. Não vai saber nem o que o atingiu! E bem na hora que pulei gritando feito louca a energia voltou e a luz que iluminava a porta acendeu, bem a tempo de eu me deparar com uma vaca, que me olhava impassível como quem perguntava: “O que essa louca tá fazendo?” 

Convenções


Não sei o que acontece com as numerações de roupas e sapatos hoje em dia, mas o certo é que está ocorrendo um problema imenso: ou a população está aumentando de tamanho ou as roupas e sapatos estão sendo feitos para pigmeus desnutridos.
Durante muito tempo sofri com o maldito rodízio de carros. Sempre deixei o dia do rodízio para ir visitar sítios e fazendolas fora de São Paulo, assim conseguia sair de madrugada, bem antes do início do horário da proibição absurda e voltar antes do início do horário da tarde. Só que muitas vezes isso não dava certo e eu acabava tendo de fazer hora em algum lugar pelas estradas.
E foi num desses dias que fui parar num shopping na Castelo Branco, com cerca de três horas para matar naquele lugar.
Lembro-me de que o shopping não era muito grande, sequer possuía um cinema, portanto comecei com uma visita ao toalete com direito a um “banho de gato” com lencinhos perfumados a fim de camuflar o cheiro de estábulo, bem como prender o cabelo novamente, passar um batonzinho e lá se foram 15 minutos. Em seguida, sentei-me numa lanchonete e fiz uma farta e demorada merenda. Contudo, comendo sozinha, sem falar com ninguém, quão demorado pode ser um lanche? Outros 15 minutos! E agora? O que fazer para matar as 2 horas e meia que restavam? Comprar um livro e começar a lê-lo? E assim saí andando, olhando as vitrines e tentando me lembrar se precisava de meias, talvez roupa ou acessório para alguma festa iminente, ou seria um presente?  Quem faz aniversário este mês mesmo?
O certo é que passei muitas vezes pelas mesmas lojas e acabei parando na frente de uma de sapatos masculinos hipnotizada por um par que passariam bem por um Oxford feminino. E esse com certeza teria do meu tamanho! Além de ser a metade do preço do similar feminino! Será que alguém perceberia que se tratava de um exemplar masculino?
Fui tomar um café para pensar no assunto, quando surgiu outro problema: como pedir o sapato e experimentá-lo já que se eu comprasse sem prová-lo e não servisse iria ficar complicado voltar lá tão cedo para trocá-lo, visto que meu trabalho para aquelas bandas já havia terminado.
- Oi, moço, tem número 39? E 40? Que cores? Aceita cartão?
Agradeci e saí da loja. Cadê a coragem?
Mas menina e aquele papo de que você não pode se deixar levar pela opinião dos outros? De que quem paga suas contas é você e por isso não deve satisfações a ninguém? Cadê a bandeira agora? E os anos de terapia? E aí? Vai amarelar mesmo?
Rodopiei nos calcanhares e voltei na loja, irrompendo segura de que nada nem ninguém poderia impedir a compra.
- O senhor me traz um 39 e um 40 desse aqui? Preto.
Sem nem olhar para o lado, sentei-me, tirei minhas botas sujas de barro e fiquei esperando para experimentar os sapatos. Só então me dei conta que estava com meias cheias de carrapicho de capim e respingadas de lama e algo mais, que levantava um cheiro característico de chulé com bosta de vaca.
Meu Deus! E agora? Sair correndo? Comprar sem experimentar como se fosse um presente? Mas eu já estava descalça e o homem já estava voltando com os sapatos.
Não dava mais tempo para qualquer reação a não ser encarnar o papel de que tudo aquilo era perfeitamente normal e dentro do script. Assim, tirei as meias grossas, calcei os sapatos novinhos e com a cara mais deslavada optei por um dos tamanhos.
Enquanto o vendedor foi fechar a compra, lentamente vesti as meias sujas, as botas enlameadas, olhando em volta com o rabo do olho. Aparentemente, ninguém havia prestado atenção ao que estava acontecendo comigo. Graças a Deus! Rapidamente, fui pagar a conta esticando a mão com o cartão, sem nem olhar para a moça do caixa. Só ao sair da loja que vi as pelotas de barro e a mancha de lama que ficou no carpete da loja.
Já fora do lugar, o coração a mil como quando aprontava escondida dos pais, nada importava mais, pois havia comprado o calçado e vencido todas as convenções sociais impostas.
É claro que o sapato ficou um tempão guardado no armário, já que comprá-lo numa loja desconhecida, com um vendedor anônimo foi até fácil, mas exibí-lo em público já seriam outros quinhentos!
Eis que um dia surgiu uma oportunidade para usá-lo numa reunião familiar, assim o mico, se houvesse, ficaria em casa. E o melhor de tudo é que minha irmã, a patrulheira da moda, que sempre me mede de cima a baixo, não iria.
A fim de tirar a atenção dos sapatos, caprichei no cabelo, na maquiagem, no colar e brincos e fui.
Como a vida não facilita muito quando é para nos ensinar, foi exatamente a minha irmã que abriu a porta da casa da minha prima. Seu outro compromisso havia sido desmarcado e ela resolveu aparecer na reunião familiar.
Após me olhar de cima a baixo, parou nos meus sapatos.
- Sapatos novos?
- É.
- Onde você comprou?
- Numa lojinha no interior.
- Bonitos. Gostei.
A verdade é que apesar dos meus esforços para tirar a atenção do meu sapato, eles acabaram sendo muito comentados e elogiados. Lógico que nunca contei que eram masculinos. E depois disso, comprei outros pares, bem como camisas masculinas, que ficam um charme com jeans.

Exibo todos os artigos com garbo e quando me perguntam onde comprei logo penso: sabe de nada inocente!