domingo, 3 de agosto de 2014

Marginais

- Ué, você não estava torcendo pela Alemanha?
-Estava.
-E tá chorando por quê?
-Porque não precisava ganhar de goleada, né?
Assim é o coração do imigrante, seja ele de qual idade ou qual geração for.
A gente vive dividido e na verdade acaba sendo um ser apátrida, que não esquece a terra natal, seus bons costumes, seus melhores sons e odores, mas que também se rende ao novo, ao acolhimento, ao rompimento com crenças que a nova cultura lhe traz.
Esse tipo de liberdade, de nova visão sobre o certo e errado, do permitido e do proibido, ao mesmo tempo arrebata e assusta porque se perde a noção de limites.
Já não sei o que responder hoje em dia quando me perguntam se isto ou aquilo é certo. Jamais replico diretamente e tal qual um terapeuta returco com outra pergunta o que leva meu interlocutor às raias da loucura!
Todavia aprendi que o conceito de certo e errado, bem e mal, positivo e negativo são bem relativos, já que palitar os dentes em público é perfeitamente aceitável na Itália e um ato de grosseria na França, assim como na China cuspir na rua é um ato de higiene já que, segundo suas crenças, estariam tirando a sujeira do corpo.
Então como fazer? Que limites aceitar para viver? O ser humano é um ente que precisa de regras, que precisa de crenças, que precisa de barreiras que contenham sua bestialidade.
Entretanto ao conhecer novas culturas, novos mundos, novas gentes, vê-se que existe vida além do nosso umbigo. E se para um adulto é complicado, para as crianças é missão quase impossível!
Se por um lado é bom saber que existem outros modos de vida, por outro fica muito difícil se adaptar ao local onde se vive. Costuma-se dizer que viajar abre a mente e isso é verdade. Por outro lado, uma vez aberta, não há como voltar atrás e a adaptação aos costumes e tabus de alguns lugares pode ser muito difícil. Assim, acaba-se por viver num clã, marginalmente à cultura local. E aí cria-se outro problema que é conviver com o olhar espantado dos nativos. Este assunto tem sido recorrente em nossa mesa, às refeições, quando a família se une. Como dar limites a adolescentes? Fatos corriqueiros podem ser fonte de graves discussões, já que segundo a cultura brasileira pequenos delitos como dirigir depois de beber um quantidade mínima de álcool é permitido e já na terra natal nenhuma quantidade é tolerada.
A verdade é que essa abertura de mente nos faz olhar cada vez mais para nós mesmos e assim acabamos por criar um código de ética e crenças muito particular e subjetivo, surgindo assim nossos próprios limites. Além disso, a gente aprende a respeitar as diferenças, sem contudo nos sentirmos obrigados a incorporá-las se elas forem de encontro com nosso código de ética e desse modo, respeitamos os italianos palitando os dentes em público, mas nós não fazemos isso até porque nosso dentista não recomenda o uso de palito, só de fio dental. Com isso pautamos nossos hábitos mais no que nos diz a ciência do que no que é comum no lugar onde vivemos. E o que a ciência não pode direcionar, usamos o bom senso, o gosto próprio e as crenças aprendidas com nossos antepassados que decidimos manter.
- E por que você está torcendo pela Alemanha?
- Porque eles são os melhores. Trabalharam e treinaram muito para serem os melhores e merecem demais ganhar por isso.
Pronto! Parece que meu periquito tem aprendido bem os valores que damos importância: nada cai do céu.



sábado, 2 de agosto de 2014

Angústia


Pavor! Pavor insano mesmo! E agora? Calma. Primeiro procurar na folhinha a data e depois fazer contas. Meu Deus! Isso será muito azar! Isso não pode acontecer comigo! Não a esta altura da minha vida!
Triiiimmmm! Triiiimmmm!
Só me faltava essa! É ele! Parece que cheira as coisas!
- Oi.
- Oi. Nossa! Você está bem? Tá com uma cara...
- Cara de quê? É claro que estou bem! O que você quer?
- Ihhhh, TPM ainda? Melhor eu chamar outra hora?
- Não! Desculpe, ando dormindo mal. Tô cansada.
Três dias de atraso. Por que fui na conversa dele? Mas ele está operado já faz quase 1 ano! Deixa eu ver... nesse tempo ele passou a metade fora viajando, no início a gente continuou usando tabelinha e camisinha o que dá ... um puta azar se eu estiver grávida!
Filhos na minha idade? Minha coluna não aguenta, minha paciência menos ainda. Adeus viagens, adeus liberdade! Meu Deus me livra dessa! Calma, raciocina. Na sua idade é quase impossível! A taxa de fertilidade cai vertiginosamente. É, mas nunca atrasei na vida! E já está 3 dias atrasado. Ai que medo! Um alien dentro de mim!
Mais um dia amanhece, corro ao banheiro e ... nada! Ai que agonia! Chá de salsinha! Isso! Chá de salsinha faz descer. Chá de canela também! Ou era para cólicas? Na dúvida, chá de salsinha com canela!
Argh! Acho que vou vomitar! Coisa ruim demais!
Trimmmm! Trimmmm!
- Oi.
- Dormiu melhor? Cansada ainda?
- Tô melhor sim. O que você quer? Tava de saída.
- Saída?! Assim?
Puta que o pariu esqueci da câmera!
- Não! Estou atrasada, preciso me arrumar! Fala logo o que você quer!
- Nada em especial. Queria saber de você. Tô preocupado. Você está estranha. Não vai me dizer o que está acontecendo?
- Não está acontecendo nada! Muito trabalho, os problemas de sempre e insônia. Quando você volta?
- Depois de amanhã. Vou direto do aeroporto para a sua casa.
- Que horas você chega?
- Ainda não sei. Estou tentando um voo logo depois do almoço, senão só à noite.
O dia transcorreu normalmente, mas a agonia não sumia. Era só dar uma parada nos afazeres para ela voltar. Santo Deus, como na maturidade certas agonias são quase insuportáveis! Talvez a falta de experiência, a falta de saber exatamente o que se quer da vida, nos faça ser mais maleáveis e nos faça aceitar melhor as coisas. Neste momento da minha vida já não quero mais fazer limonadas com os limões que a vida por ventura me der.
Mais um dia e nada! À noite, já em casa, abro uma garrafa de vinho. Vinho, álcool, segundo a vovó era melhor que o chá. Entorno a garrafa toda, assim pelo menos me fará dormir. De manhã corro ao banheiro e mais uma vez nada!
Chega de agonia! O negócio é fazer logo um exame e acabar com isso. Ligo para o consultório do médico onde sou informada que consulta só para dali uns 15 dias, mas que conseguiria um encaixe no fim da semana seguinte. Desgraça! Até lá morrerei de angústia!
Hmmmm, mas o que é isto que estou sentindo? Uma cólica talvez? Que nada!
Que burrice! A vida inteira me controlando para não passar por essa angústia e agora depois de macaca velha me acontece isso?!
Teste de farmácia! Isso! Tudo bem que não são muito precisos, mas acho que dá para me acalmar ou não até a consulta.
- Bom dia, o senhor tem teste de gravidez?
- Temos sim. Ali naquela gôndola.
Ao chegar na tal gôndola quase choro: no mínimo meia dúzia de marcas diferentes. Por que a gente não pode simplesmente pegar um teste de gravidez? Unzinho só? Tem que ter opções? Numa hora destas tem como pensar nas opções?
- Posso ajudar?
Olho atônita para a funcionária da farmácia, uma mocinha de uns 18 no máximo 19 anos. Como ela poderia me ajudar? O que ela saberia para me ajudar?
- Eu... eu... não sei qual escolher ...
- Ah, simples. Não leva este porque ele falha. Para mim deu negativo, mas eu tava grávida. Esse aqui nunca usei, não sei. Olha, o que sempre uso e que dá certo é este. Pode levar. Pode confiar!
Meio trêmula peguei a caixinha da mão da moça e fiquei olhando-a.
- Menina, quantos filhos você tem?
- Nenhum. Era para eu ter uns quatro já, mas eu tiro todos. Sou muito nova para ser mãe.
Com essa perdi o rumo. Repentinamente não sabia nem onde estava, para onde ia.
- Senhora, mais alguma coisa?
- Nã-não!
- O caixa é ali então.
Em casa olho a caixa como quem fita um monolito, um oráculo que ditará o resto da minha vida. A bula quilométrica explica tudo, da rebimboca da parafuseta até o sexo dos anjos. Assim pulo as informações técnicas e passo para o que realmente interessa: que cor tem que ficar para ser negativo.
Pronto! Agora é só esperar sete minutos. Pego o timer da cozinha e ajusto o tempo, quando ouço a campainha. Quem será? Não estou esperando ninguém...
-Ué, você? Não vinha só amanhã?
- Terminei antes e vim. Não está contente em me ver?
- Não é isso. Você não está cansado? Não quer ir para a sua casa? Tomar um banho? Depois você vem. Na boa, agora estou terminando uma coisa, não esperava você hoje e não vou poder te dar atenção.
- Não posso entrar?
- Claro! Pode! Vem!
Meu Deus! E agora? Não queria que ele soubesse de nada. Não agora. Se der negativo, nem precisa saber. Se der positivo nem sei o que vou resolver. Aborto não encaro, mas ... Afe!
- Karin, o que está acontecendo?
- Nada!
- Pára com isso! Você acha que sou algum idiota? É claro que está acontecendo alguma coisa! Você está com outro?
Não acredito! Eu no meio de um problemão destes e ele está pensando que eu tenho outro?! Homens! Só pensam em sexo! Se eu sair desta nunca mais transo na vida! Ou melhor, nunca mais transo enquanto não estiver na menopausa!
- Anda, Karin, me fala! Quem é? Eu conheço?
- Você é um insensível, um ridículo! Vai embora! Não volta mais aqui!
E assim me tranco no banheiro aos prantos. O timer me assusta com sua campainha estridente. Olho o pedaço de plástico e graças a Deus está verde.
- Karin, abre! Que caixa é esta que estava sobre a mesa de jantar? Você está grávida? Como assim? Eu me operei!
Abrindo a porta aliviada, testo:
- E se estiver?
De olho arregalado ele responde:
- Para quem já tem seis o que é mais um? Mas como isso é possível? Eu me operei. Eu fiz todos os testes. A gente tomou cuidado nos primeiros meses ...
- Você acha que eu dormi com alguém?
- Não! ... Dormiu?
- Claro que não!

Mostro, então, o teste negativo e ele respira aliviado.