quinta-feira, 18 de junho de 2015

Táxi!

Dos tempos de criança, filha de imigrantes fugidos da guerra que aportaram por aqui sem eira nem beira, ficou-me a impressão de que para andar de taxi, há que se ter muito dinheiro.
Engraçado como certas opiniões e vivências nos marcam para uma vida toda.
Hoje tudo depende, ou melhor, dependendo do lugar que se vá e o horário, uma corrida de taxi pode sair muito mais barato que ir de carro, já que quando se computa a gasolina gasta, o custo do valet/flanelinha/estacionamento e o tempo gasto no trânsito uma vez que em certos horários os taxis podem andar nas faixas de ônibus, vale mais a pena pegar um carro de praça.  
Chamar um carro de aluguel também ficou mais fácil, já que atualmente é só sacar meu celular, pedir um e menos de 5 minutos depois ele está na minha porta, com o aplicativo berrando: “táxi!”.
Por outro lado, hoje em dia está cada vez mais difícil achar um sem a ajuda do aplicativo, já que parece que os taxis vazios não existem mais. Que dificuldade pegar um na beira na calçada, esticando o braço como se fazia antigamente.
Isso me lembra um mico que passei na Avenida Paulista. Amo esta avenida, mas quando venta... Foi lá que aprendi na pele o que é um vento encanado.
Que ventania fazia aquele dia! Ela corria pela avenida inteira fazendo voar tudo que encontrava pela frente, era palpável! Tão palpável que com seus dedos ágeis e fortes arrancava bonés, perucas, papéis das mãos dos incautos e com esses mesmos dedos, enchia olhos de fuligem e areia, dava tapas nas faces fazendo acordar as sinusites adormecidas. Que gelo!
Eu vinha caminhando na beirada da calçada, contra o vento, tentando preservar os olhos e brigando com um casaquinho de lã, a fim de vesti-lo. Contudo a ventania era tanta e tão forte que atrapalhava a colocação do casaco. Além disso, trazia no ombro uma bolsa bem pesada.
Já muito irritada com a luta, tremendo de frio, a um dado momento equilibrei o casaco ao vento e com um movimento brusco e forte tentei enfiar o braço livre da bolsa na manga do casaco. Acontece que o vento era tão forte que tirou o casaco da posição e meu movimento brusco e raivoso, além da bolsa pesada, me tiraram o equilíbrio de maneira que o casaco voou longe.
Nesse mesmo momento um taxi freou bruscamente ao meu lado e logo abriu a porta para que eu entrasse.
- Moço, não vou pegar taxi.
- Como? Você fez sinal! Eu brequei e quase causei um acidente.
- Eu? Sinal? Não moço. Tava vestindo meu casaco!
- Casaco? Que casaco?
- O que o vento levou!
- Mocinha que brincadeira é essa?
- Moço, tô falando a verdade. O casaco voou!
- Ora bolas! Cada uma! Fala a verdade, menina! Você fez sinal e agora se arrependeu, né? Vê se não faz mais isso, viu?
E assim saiu bravo, louco da vida comigo. E eu fiquei ali atônita, envergonhada, sem casaco.
Será que quanto mais a tecnologia avançar para nos facilitar a vida, mais nos tirará de situações pitorescas como esta?
O que meus netos contarão para seus filhos?
- Eu apertei o botão e ele não funcionou... Daí peguei meu outro dispositivo, liguei um cabo e ele consertou o mal funcionamento do botão em 2 milissegundos. Podia ser mais rápido, eu sei, mas ainda não consegui a nova versão desse aplicativo.
Ai que saudades de quando as portas dos taxis eram amarradas com cordas! A vida era mais simples, honesta e engraçada

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Saudosismo

Ando saudosa, lembrando-me dos tempos de antes. De certo é a velhice chegando já que gente nova não tem o que relembrar? Claro, mente ociosa é de lascar! Cada bobagem que a gente começa a pensar quando não tem o que de fato pensar!
Ocorre que não consigo impedir que certas lembranças invadam minha mente nas ocasiões mais comuns do mundo.
Hoje ao pegar um táxi, bem quando ouvi o barulho do destravamento elétrico da porta acionado pelo motorista, uma imagem se colocou na frente de tudo que tinha na mente naquele momento: os táxis que costumava pegar com minha mãe quando eu era criança.
Meus pais tinham uma loja onde meu pai consertava rádios e TVs que funcionavam a válvulas. Meu Deus! Quanta curiosidade eu tinha com relação ao armarinho onde meu pai guardava as frágeis válvulas, cada qual em sua caixinha de papelão grosso, posicionada deitada, formando pilhas e mais pilhas nas prateleiras, com seus códigos, modelos e marcas bem à vista. Claro que só podia olhar de longe já que segundo meus pais elas custavam muito caro e a quebra de qualquer uma delas resultaria num prejuízo grande, além de um possível atraso na entrega do serviço. Nossa! Só agora me dei conta que vi nascer o transistor poucos anos depois e que por conta disso, pude ajudar minha mãe a esvaziar o armarinho das válvulas agora inúteis.
-Posso pegar mesmo, mãe?
- Pode! Só cuidado para não quebrar porque esse vidro corta feio.
Mas voltando nesse tempo, lembro-me de que fui filha única até os 6 anos de idade numa época em que babás eram artigos de luxo e só existiam nas casas dos ricaços. Por isso, mamãe me arrastava para todos os lugares que ia. Na loja tinha um colchonete embaixo da escrivaninha onde eu dormia todas as tardes, abraçada à cadela da raça pastor alemão que tínhamos, enquanto fingia estar numa cabana.
E, claro, quando minha mãe ia à Rua Santa Ifigênia comprar as tais válvulas e outras peças de reposição, eu ia junto.
Sempre pegávamos o ônibus na frente de casa e descíamos na Av Ipiranga quase na esquina da Santa Ifigênia. Mamãe já sabia quais lojas ir e com uma lista repleta de números e marcas comprava-as para os aparelhos que papai consertava.
- A senhora não quer levar mais de uma desse modelo? Tá saindo muito e com certeza a senhora vai economizar viagem.
- Não sei não. O senhor pode aguardar um minuto? Vou ligar e perguntar para meu marido. Eu tenho uma ficha aqui, obrigada!
Depois de escolhidas, as caixinhas eram empilhadas formando um cubo enorme e o homem amarrava tudo com um barbante desses de algodão formando quase uma rede para segurar todas juntas e ainda fazia uma alça para mamãe poder carregar tudo. Essa era a hora em que eu me maravilhava toda e ficava atenta tentando acompanhar os movimentos rápidos do homem com o barbante.
De lá íamos à pé até o Mappin, onde mamãe comprava aquilo que havia visto na visita anterior e já com a devida autorização de papai, ela orgulhosamente escolhia e mandava embrulhar para presente.
- Presente para quem, mamãe?
- Para nós! Para nossa casa!
A essa altura eu já estava muito cansada e acabava me sentando no degrau da escada sem muito interesse pelo pacote, já que durex não me chamava a atenção.
- Vamos filha, será que a moça do elevador sabe onde fica a lanchonete?
Essa era a deixa para aquele momento particular que só ela e eu tivemos na vida: nossa parada na lanchonete do Mappin.
Ela pedia um café e eu um sorvete com cereja no topo. De lá íamos a pé até a Praça da Sé onde pegávamos um táxi, que sempre era um fusca, sem o banco da frente e que o motorista amarrava uma corda na porta pela qual ele a puxava para fechar tão logo nos acomodávamos no assento.
Muitas décadas depois perguntei a ela porque andávamos tanto para pegar um táxi:
- Filha, táxi naquela época era caro. De onde você acha que eu tirava o dinheiro para o nosso café e sorvete?
Já acomodada no táxi, o barulho da trava elétrica me traz de volta à atualidade.
- Hoje parece que vai esquentar, né?
Isso é exatamente o que não mudou. Naquela época, a da ditadura, não se falava de nada sério com desconhecidos. Hoje em dia, época da violência gratuita, não se fala nada além de sobre o tempo.
- A senhora viu a passeata para Jesus?
Definitivamente esses passeios de táxi com mamãe me deram uma bagagem de experiências muito importante para os dias de hoje e assim saio de qualquer saia justa na boa.
- Não, não vi. Do que se trata?
- É, se fosse bandalheira a TV estava cobrindo o tempo todo, mas como é coisa de Deus...
- O senhor tem razão, por isso não vejo mais TV. Só sem-vergonhice mesmo!
- Eu tenho a TV do RS Soares, a senhora sabe, lá só passa programação boa...
Volto-me para a janela buscando me perder de novo nas lembranças dos fuscas e suas portas amarradas com uma corda.

Será que é por isso que ando tão saudosa? 

segunda-feira, 1 de junho de 2015

O pacote

- Tia, eu não tenho irmãos, então os meus filhos não vão ter tia, né?
- É sim, Viktor.
- Mas tia, e quem vai levar eles no dentista como você me leva?
- Ela é minha tia!
- E daí, quem vai morar com ela sou eu!
- Não pode! Você não é filho dela! Seu burro!
- Meu pai vai casar com ela e eu vou morar com ela! Cabeção!
- Ei, meninos, chega de briga!
- Mas mãe, ela é minha tia!
- Viktor, ela é sua tia porque é minha irmã e quando casar com o pai dele vai ser madrasta dele.
- Nãooo, não quero! Ela não vai ser minha madrasta porque ela é legal!
- Karin, posso falar uma coisa com você?
- Claro!
- Então, não sei como... meu pai vai me arrancar o couro...
- O que foi? O que tá acontecendo?
- Acho que a minha namorada tá grávida...
- Você já falou com sua mãe?
- Não! Não adianta. Ela vai mandar eu me virar com meu pai...
- Não dá mais! Ele é muito teimoso! Nada do que eu digo ele aceita. Então pra quê que eu fui estudar? Vou cair fora! Vou arranjar um emprego e ele que se vire!
- E você acha que com patrão estranho vai ser diferente? Que você vai chegar com seus diplomas e todo mundo vai dizer amém? Aposto que se você mostrar para seu pai que do seu jeito também pode dar certo, ele vai aceitar. Mostre que você sabe do que está falando. Por enquanto você só mostrou insegurança, quando quer a aprovação dele. Larga a barra da calça dele e assuma os riscos. Seja profissional.
- Alô, Zizi? Eu machuquei o meu dedinho. Você pode vir aqui na minha casa curar ele?
- Periquito, sua mãe já não pôs remédio? Agora tem de esperar o remedinho curar...
- Não, Zizi, minha mãe não é doutora. Eu quero você!
- Amor, eu sou doutora de bichinho...
- Ué! Mas eu não sou seu periquito?
Dia das mães. O que é uma mãe? Quem pare? Quem cria? Quem ajuda a cuidar?
Nunca quis esse ofício, por não me achar capaz, tanto que nunca pari. Mas a vida a gente não controla, nem programa. Assim encarei um sobrinho até os cinco anos de idade, com direito a troca de fraldas, papinhas até ir fazer a adaptação no jardim da infância e não satisfeita, essa mesma vida me arranjou seis filhos do coração. Cada um numa idade, numa fase de aprendizagem e questionamentos, como que me cobrando de uma só vez a experiência que eu deveria ter se tivesse tido um filho.  
E lá se foram sete anos, o meu pânico sumiu, já tiro de letra os conflitos de cada fase e aprendi a aceitar e curtir o dia das mães especial que tenho com eles sempre no sábado que antecede o domingo oficial das mães, porque mãe é sobretudo amor e amor é o que temos de sobra entre a gente.

- Zizi, a gente ainda é o pacote que veio junto com o papai? 

Blue Eyes

Depois de esperar meses por uma mesa num restaurante badalado e muito recomendado, finalmente o dia chegou.
Claro que nesses dias a lei de Murphy sempre se impõe e a correria para não perdermos a hora e consequentemente a reserva foi grande.
O restaurante era deslumbrante, com uma decoração moderníssima, de muito bom gosto, assinado por um arquiteto mundialmente famoso.
Nossa mesa ficava bem junto a um janelão de onde podíamos ver a cidade e suas luzes e do outro lado tínhamos a vista do salão todo.
Ainda esbaforidos, acelerados pela correria, nos sentamos e enquanto meu marido se desvencilhava de um telefonema de negócios, meu olhar logo foi percorrer o salão em busca de alguma história. Aliás, esse é meu esporte favorito: observar os outros, tentar adivinhar quem são, o que fazem ali, inventar histórias. Os meninos adoram participar, mas maridão já não, talvez porque tenha se habituado a manter o olhar do estranho no ninho em paragens distantes, muitas vezes perigosas, uma vez que porque ele viaja o mundo, já se viu em meio a guerras, revoluções, ataques terroristas, explosões de violência impensáveis como a invasão e ataque de um elefante a um restaurante paquistanês. Portanto, seu olhar é sempre de alerta, procurando qualquer sinal de violência iminente.  
Enquanto ele examinava a carta de vinhos, fiquei olhando em volta, reparando em expressões e trejeitos, que é de onde se pode extrair alguma idéia dos acontecimentos quando não se pode ouvir a conversa ou não se entende o idioma.
Nesse flanar do meu olhar, dei de cara com um par de olhos azuis, cristalinos como o mar, que me remeteram a outros olhos azuis bem famosos, os de Frank Sinatra. Só que estes me fitavam lânguidos e os do Sinatra nunca vi ao vivo. Estremeci, logo parei de olhar e displicentemente voltei-me ao meu marido mais para saber se ele havia visto a troca de olhares do que para saber se já havia escolhido o vinho.
Pedidos feitos, iniciamos nosso bate papo como duas comadres, entremeado por mais duas ligações de negócios, até que a comida chegou.
- Aquele cara não para de olhar pra você!
- Cara? Que cara?
- O que está sozinho na mesa ao lado, de olhos azuis...
- Tá brincando! Tá olhando nada!
- Tá olhando sim! Aliás, como é mesmo a brincadeira que você faz com as crianças? Adivinhar a história das pessoas? Pois bem, qual a história desse aí?
Enquanto comíamos comecei a tecer uma história sobre um homem que estava perdido numa cidade estranha, sem memória, com muito dinheiro no bolso. Morto de fome, havia resolvido entrar naquele restaurante para comer. O restaurante não lhe era estranho, parecia que o conhecia bem, e assim em busca de lembranças começou a encarar as pessoas...
- Não sei não. Mas acho que essa história não combina com ele.
- Mas eu não acabei ainda!
E continuei contando que na verdade o homem era um mafioso russo...
- Peraí! Russo???? Moreno assim?
- Claro! Ele foi criado pelo chefão da máfia russa depois que seus pais foram mortos pela própria máfia...  Fica frio que vai ter o tiroteio e as explosões de que você gosta. Eu chego lá!
E assim fomos jantando e rindo com a história que estava sendo criada ali sobre um mafioso russo, muito sedutor, desmemoriado, que fazia seus negócios sujos naquele restaurante.  E conforme a história evoluía, ríamos mais e vez ou outra olhávamos para o homem que continuava a me encarar, agora descaradamente.
Mesmo sem mirá-lo diretamente, sentia o seu afrontamento. Assim que pediu o café, meu marido se levantou para ir ao banheiro, deixando-me sozinha à mesa. Por longuíssimos 10 segundos hesitei em olhar para o homem, não queria encorajá-lo a qualquer atitude, mas ao mesmo tempo fiquei indignada com a insistência dele, mesmo na frente do meu marido. Sorte que o Günther se diverte com essas situações. A única vez que o vi indo para cima de alguém foi quando o irmão cearense de uma amiga minha me deu “um cheiro” no pescoço. 
A verdade é que não resisti, sentia o olhar dele me queimando e assim que dei uma espreitadela, ele se levantou.
Pronto! E agora? Seria um escândalo? Como me desvencilhar do inoportuno? Mas que chatice! E o Günther? Ai meu Deus! Socorro!!!!!!!!
Praticamente em pânico virei-me para o janelão fingindo estar vendo a paisagem noturna e rezando para o homem ter se levantado para ir embora ou ao banheiro.
Que nada! Com o canto do olho percebi-o parado de pé me fitando.
-Querida, sabia que preconceito é feio?
E com um gestual mais afetado ainda continuou:
- Você e aquele seu bofe ficaram me gozando a noite inteira! Isso não se faz!
E com as duas mãos na cintura arrematou:
- Eu achei o seu colar de jade di-vi-no, não pude tirar meus olhinhos dele a noite inteira. Pena que esteja no pescoço de uma pessoa tão feia. Pronto falei! Passar bem!
Boquiaberta, sem saber o que dizer ou fazer, só consegui seguí-lo com os olhos enquanto ele se dirigia para a saída até que vi meu marido voltando morrendo de rir.
- Ele era gay?!
- Mas é claro que era! Mafioso russo?! Nem em mil anos!


terça-feira, 5 de maio de 2015

Frango do chef

Ir morar sozinha foi fácil, muito fácil. Claro que alguns perrengues pareceram impossíveis de resolver, mas os anos agarrados na barra da calça do meu pai foram essenciais para eu me virar na nova vida.
Assim, pendurar quadros, lidar com a fiação do computador, trocar interruptores velhos, pintar paredes descascadas foram até diversão para mim.
O problema era encarar o forno e o fogão já que mal sabia fritar um ovo. No almoço comia PF de boteco, já que não existia bufê a quilo naquela época. E no jantar era lanche ou miojo. A festa era quando ia comer na casa da mamãe e ela me mandava uma marmitinha com as sobras da refeição. Nossa! Que saudades do tempero dela! Contudo, meus pais nunca deram muita moleza para minha irmã e eu e por isso, ao sairmos de casa em busca de independência, a gente tinha de ser independente de fato. 
Lá em casa a gente era meio que obrigado a aprender de tudo para saber mandar fazer depois, só que eu, como uma espécie de revolta ou prevenção contra os afazeres domésticos fiquei craque na faxina, mas passava longe da cozinha. Pensando melhor, acho que a causa dessa aversão era o jeito de mamãe nos ensinar, sem muita liberdade, sem me deixar fazer do meu jeito e por isso eu preferia ficar com papai e seus afazeres de consertos da casa e cuidados com o jardim.
Depois de quase um ano comendo PF e miojo resolvi encarar a cozinha e começar com o trivial: macarronada e frango assado. Afinal, não deveria ser mais difícil assar um frango que fazer uma cirurgia qualquer, foi o que pensei.
Consegui uma receita fácil à beça chamada frango do chef e arregaçando as mangas comecei pegando o liquidificador e colocando nele cebola, alho, salsinha, cebolinha, sal, pimenta do reino e azeite a fim de fazer uma pasta para temperar a bendita ave conforme dizia a receita. Aí era só tirar o frango do plástico, lavá-lo bem debaixo da torneira, besuntá-lo com essa pasta e enfiar no forno. A essa altura já estava sonhando com o gosto do franguinho assado, bem temperadinho. Hmmmm, a boca começou até a salivar.
O molho do macarrão não era difícil, bastava esquentar o de latinha. O problema mesmo era o frango que eu ficava vigiando através do vidro do forno.
Nisso tocou o telefone e minha tia ao saber da minha aventura na cozinha resolveu dar seu palpite:
- Você untou a forma, né ? Senão gruda no fundo e quando você for tirar, sai toda a pele junto. Se bem que frango sem pele é mais saudável. Além disso, você tem de cobrir com papel alumínio por metade do tempo e depois você tira para dourar...
- Ah, claro! Fiz assim mesmo!
E desliguei logo para correr para tirar o frango do forno e untar a forma, tirar a pele e cobrir a forma depois.
Que trabalheira! Já estava tudo bem quente, o frango já havia grudado um pouco no fundo da forma, mas o mais difícil foi tirar a pele toda do frango. Acabei queimando quase todas as pontas dos meus dedos. Ufa! Só cobrir com papel alumínio e aguardar o tempo certo para poder depois devorar tudo!
Logo que me mudei quase mandei desligar o telefone porque a família toda me ligava no início da noite para saber se eu estava bem, se já estava em casa, se estava precisando de alguma ajuda e nesse dia não foi diferente.
Não demorou muito e minha avó ligou.
- Sim, vó, já untei a forma, tirei a pele e cobri a forma...
- Você tirou a pele antes de assar? Vai ficar muito seco! Olha, bota um pouquinho de água que além de criar vapor para cozinhar o frango, faz um caldinho bom no final. Bota umas batatas...
Ai meu Deus! E agora? Corri para o forno e sorte que não havia jogado fora a pele de maneira que com jeitinho literalmente vesti o frango, já meio cozido, com a pele que também já havia meio encolhido e amarrei ainda com fio de sutura de algodão para ajustar bem a pele ao frango. Perfeitamente vestido, coloquei um copão de água na forma e enfiei o frango no forno de novo.
A esta altura já estava achando que fazer uma cirurgia cardíaca era mais fácil que assar um frango.
E novamente o telefone toca. Atendi resolvida a não falar nada sobre o frango, mas...
- Acabei de falar com sua avó e ela me disse que você está fazendo um frango assado. E que você tirou a pele. Olha, para não ficar muito seco vai regando ele com o caldinho. Você colocou água, não?
Lá fui eu regar o franguinho e quando abri, o vapor embaçou meus óculos de maneira que levei um tempinho para conseguir enxergar o estado do frango. Quase chorei! A pele estava esturricada e toda repuxada com a amarração boiando na água, deixando ver uma carne igualmente esturricada e seca por baixo. Só me restava tentar regar um pouco e ver se conseguia hidratar a carne.
E assim, com o forno aberto, o calor cozinhando minha face, fiquei jogando aquele caldinho aguado em cima do frango até que ele ficou bem escuro e eu perdi as esperanças de que ele ficasse mais macio.
Mal desliguei o forno e botei a água para o macarrão, o telefone tocou de novo. Desta vez era minha mãe que não mediu palavras:
- E o frango? Ficou bom?
- Ah, claro! A cara tá boa, mas ainda não experimentei. Não consegui fazer o macarrão com tantas paradas para atender ao telefone.
- Certo. Olha, eu sei que você detesta palpites, mas você tem idéia do que fazer com os miúdos? Dá para fazer uma canja boa...
- Miúdos?
-É. Aquele pacotinho que colocam dentro do frango e que você tem de tirar antes de assar. Lá tem a moela, o pescoço, fígado...
- Tá, tá, mãe. Canja só amanhã! Agora preciso fazer o macarrão. Tô com fome!

E assim despachei minha mãe e corri para olhar o frango, ou melhor o meio do frango e aí achei uma maçaroca plástica que havia impregnado tudo. Ainda tentei separar o que havia sido plástico com miúdos do que era resto do frango, mas não deu. Em lágrimas, acabei jogando o frango todo no lixo e pedindo uma pizza. 

domingo, 29 de março de 2015

Segurando o grito

Com a pilha de caixas da mudança já no meio da sala, despedi-me dos carregadores e fechei a porta do meu novo lar.
A cerração de início da noite parecia acentuar mais ainda o frio cortante de julho, fazendo-me ansiar por uma casa quentinha e adiando para o dia seguinte a inspeção dos limites da imensa propriedade. Para aquecer aquele projeto de lar ainda sem tapetes, cortinas e com tudo atulhado pelos cantos só mesmo acendendo um foguinho. Ademais, minhas mãos doíam de frio que parecia passar através da roupa até atingir meus ossos e congelá-los.
Essa era a minha terceira mudança nesse ano e a essa altura tudo havia sido empacotado a esmo, já que muitas caixas da mudança anterior nunca tinham sido abertas ou completamente desfeitas por falta de tempo ou espaço para guardar o que havia dentro.
O fato é que a primeira providência seria pegar madeira para acender a lareira e o fogão a lenha para esquentar a casa. Corri para o depósito que ficava embaixo do terraço. Como colocar a mão num lugar escuro que poderia ter algum bicho peçonhento? Agora morava sozinha literalmente no meio do mato, a 20 km da cidade e 5km do vizinho mais próximo. Portanto cuidar-me era essencial!
Tremendo de frio e tentando me lembrar de onde tinha posto a lanterna, fiquei parada um tempão na frente do depósito até que a sensação de que alguém ou algum bicho me espreitava encoberto pela cerração densa atrás de mim ficou insuportável. E agora? Corri para dentro de casa e me tranquei até os dentes, tentando ver através das venezianas o que havia lá fora.
Um silêncio tumular parecia piorar a situação, até que através da janela da sala vi uma família de gambás sair correndo do terraço e se perder no meio da neblina.
Ufa! Taí a assombração!
Como não achei a lanterna, mas achei velas, fui de novo ao depósito com uma que não adiantou muito, mas consegui ver que além das teias de aranha, não havia mais nada ou pelo menos nenhum olho de bicho brilhou com a claridade. Assim, fui puxando os tocos de madeira do meio, onde as aranhas não estavam e enchendo os cestos. Quando comecei a encher o quarto cesto escutei um som baixo, como um guincho abafado e uma pilha de madeira rolou para fora. Meu Deus! Tem um bicho aí! Correr? Será que não é pior? Ficar? E se for uma cobra? Vai me atacar com certeza!
Bem devagar fui me afastando, sentindo todos os pelos do meu corpo arrepiados. Assim que estava a uma distância que julgava segura, percebi que se corresse para casa iria passar um frio danado porque todos os cestos de lenha estavam ainda ali. Então, quase sem respirar, sentindo o coração na boca, fui me agachando lentamente até que vi um par de olhos brilharem no lusco-fusco da vela. Jesus! Que bicho é esse? Olhos muito grandes para ser uma cobra, cabeça muito chata para ser um roedor. O certo é que por longos 10 segundos, a criatura e eu ficamos nos encarando até que ela saiu correndo, rastejando, passando bem ao meu lado e sumindo na cerração. A escuridão associada à velocidade do animal e ao meu medo, só me deixaram ver um vulto preto rente ao chão.
Credo! Nessa hora senti até meus cabelos em pé!
- Meu Deus! Onde fui amarrar minha égua?! Perguntei enquanto carregava os cestos para dentro de casa.
Caramba! Chega de sair de casa no escuro! Essa lenha é suficiente para aquecer a casa enquanto arrumo o mínimo necessário para poder comer e dormir.
Tão logo cheguei perto da lareira pensei escutar uma movimentação. Claro! Já estava ouvindo até alma penada mesmo! Larguei a lareira e fui procurar meu aparelho de som que logicamente estava na última caixa que abri e que não continha os CDs.
Pronto! Com o rádio ligado na única estação que sintonizava, voltei para a lareira arrumando cuidadosamente a lenha entremeada de jornal para colocar fogo ao som de um pastor inflamado que pregava contra as armações do capeta. Três estadões de domingo depois, a casa estava cheia de fumaça e fogo que é bom, nada!
Se o cramulhão existisse mesmo, aquela seria uma boa hora para dar o ar da graça e me dar um pouco do fogo dos infernos.
E agora? Rapidamente abri a janela da sala, o basculante do banheiro e da cozinha e ao voltar para a lareira escuto três barulhos surdos de algo caindo pela chaminé. Quando olho, eram três morcegos intoxicados com a fumaça.
Bem zonzos, praticamente sem ar, eles se debatiam em meio à lenha e às cinzas de papel queimado, enquanto eu estava paralisada no meio da sala, já que tenho pavor de ratos e tudo que lembram eles. Afinal de contas, morcegos são ratos com asas. Num esforço hercúleo, consegui correr para a cozinha e me trancar lá.
Só quando me senti segura é que consegui raciocinar: tinha água e comida. Contudo, não tinha lenha, não tinha banheiro, não tinha cama, não tinha cobertor, não tinha sequer telefone e tinha muito frio. E agora? E se eles se enfiassem nos quartos ou mesmo no banheiro que estavam abertos? Ou nas caixas?
Com muito medo, pé ante pé, munida de uma vassoura e com o casaco cobrindo a cabeça fui olhar se eles ainda estavam na lareira. Que nada!
Socorro! Onde eles se enfiaram?
Daí que escutei o bater de asas de um deles e vi aquele monstro vindo em minha direção. Como eu era o único obstáculo entre ele e os quartos, tinha de pensar rápido e pensei! Abri a porta da frente e usando a vassoura como uma raquete, joguei o bicho para fora com um golpe certeiro. Força, Karin, que só faltam dois! Mal olhei em volta e vi os outros dois pendurados de cabeça para baixo na grade da janela da sala, bastando só fechar a janela. Entretanto, cadê a coragem de chegar tão perto assim? Primeiro corri fechar os quartos e banheiro, na esperança de que eles fossem embora sozinhos, mas que nada! O jeito era usar a vassoura, derrubando-os com um golpe e fechando a janela com outro. Teria de ser uma ação rápida, em dois movimentos, sem falhas. Mal fui chegando com a vassoura, os dois voaram para longe e eu consegui fechar a janela. Mas e se eles voltassem a entrar pela chaminé? Só havia um jeito: botar fogo a qualquer custo!
Completamente em pânico, abri uma lata de óleo de soja e derramei sobre os tocos de madeira, risquei o fósforo e vi a língua de fogo se espalhar pela lenha. Desta vez não houve fumaça, mas o cheiro do óleo queimado era quase insuportável.
Já completamente ensopada de suor, sentei-me no chão frio, em frente à lareira, pensando que já haviam se passado quase duas horas e eu ainda não tinha onde dormir, nem o que comer. Todavia já havia resolvido não acender o fogão a lenha. Vai saber que bicho poderia haver na sua chaminé!
Puxei uma caixa para perto de mim e comecei a olhar o que tinha dentro a procura de pratos, copos, panelas, mas achei as de roupas de cama.
Tão logo decidi a posição da cama no quarto, arrumei–a assustando-me com o estrondo do trovão. Chuva? Que delícia dormir com o barulhinho da chuva!
Finalmente achei as caixas da cozinha e me pus a fazer uma sopinha sob os clarões dos relâmpagos e o barulho dos trovões que pareciam estar cada vez mais próximos. Um vento forte assobiava ao encontrar as janelas e finalmente caiu a chuva, pesada, forte.
Naquela época o telefone era ainda de disco e possuía uma campainha estridente, tal qual um sinete. Quase derrubei o prato cheio de sopa que segurava quando o telefone tocou uma só vez, ao mesmo tempo que vi um clarão imenso através da janela. Que susto!
Ao levantar o fone do gancho, estava mudo. Que beleza! Agora só faltava acabar a luz!
Cansada das bobagens ditas pelo pastor evangélico no rádio, resolvi dar uma corridinha até o carro que estava estacionado na porta para pegar um CD e assim abri a porta e corri. Um pé lá e outro cá. Tão rápido que a chuva apesar de intensa praticamente não me molhou.
Pronto! Sonzinho maneiro, sopa quentinha e uma lareira aconchegante. O que mais eu poderia querer? Sentei-me no chão, próximo à lareira e comecei a degustar meu néctar quando pressenti que estava sendo observada. Bem devagar fui me virando para ver quem ou o quê estava me mirando. Nada!
Para, Karin, que você já está ficando paranoica!
Voltei para a minha refeição quando escutei um estampido como de um tiro dentro da sala. De novo não! O que será agora?
Novo estampido. Larguei o prato e corri para pegar a vassoura, mas assim que entrei na cozinha um trovão de arrasar quarteirão me assustou e logo em seguida a luz apagou. Instintivamente fechei a porta da cozinha. E agora? Sem luz, sem telefone, sem vizinhos... Quem chamar? Como saber quem ou o quê estava fazendo esse barulho?
A verdade é que sozinha, sem luz e com o silêncio sepulcral que fazia, comecei a perceber que cada vez que tinha um estampido na sala, outro “respondia” do lado de fora da porta da frente.
E de novo, pé ante pé, fui até a sala com uma vela acesa numa mão e a vassoura na outra. Olha daqui, olha dali e achei num canto um imenso sapo boi, preto, que logo tentou fugir assim que me aproximei. Ai que ódio desses bichos! Novamente com a vassoura em punho fui empurrando ele até a porta e quando a abri ele deu um salto enorme para fora.
Ufa! Cansei! Chega de emoções por hoje! Vou para cama!
Com certeza verifiquei as trancas, apaguei tudo que lembrava estar aceso antes de acabar a luz e me larguei na cama, de roupa e tudo, exausta.
Só que caipira de cidade sente falta do trânsito, dos buzinaços, dos carros com som alto, das gritarias nas ruas e aquele silêncio me incomodava, me fazia prestar atenção como que se procurasse um barulho familiar para embalar meu sono.
Num dado momento comecei a ouvir passos do lado de fora da casa que iam da porta de entrada até o lado oposto que era a porta da cozinha.
Tentei olhar pela veneziana do quarto, mas a chuva já havia dado trégua, assim como os raios que já não iluminavam mais a noite sem lua. Lá fora só o breu total.
Vai dormir, Karin, que você já está ouvindo coisas!
Quietinha, prestei atenção e não ouvi mais nada. Tá vendo, sua doida! Não é nada!
Relaxei, me ajeitei na cama e quando já ia me entregar senti que mexeram na porta da cozinha. Num pulo já estava na porta do quarto procurando pela chave para trancá-la. Cadê? Só aí me dei conta de que nenhuma das portas internas tinha chave. Sem pensar muito, puxei a cama e a encostei no vão entre o armário e a porta, mas ainda dava para abrir uma fresta suficiente para alguém enfiar uma mão armada.
Diante disso desabei e comecei a chorar quando senti que os passos haviam parado debaixo da minha janela e logo depois começou um barulho de roçar, com leves batidinhas, como se alguém estivesse tentando abrir a pesada veneziana de madeira. Claro que engoli o choro! Maldita hora que decidi vir morar aqui!
Com o coração na boca, as veias do pescoço pulsando de medo, escutei os passos darem a volta na casa e irem forçar a porta da sala.
Comecei a rezar. A esta hora, sem luz, telefone, vizinhos, parentes, só Deus mesmo! E os passos voltaram para a porta da cozinha. Mais atenção e senti que eram passos pesados, lentos e ritmados e ao voltarem a passar sob a minha janela consegui vislumbrar um vulto preto, esquisito. Seria um gordo baixinho andando agachado?
Bom, o que fazer? Esperar a casa ser invadida? Atacar de surpresa?  Graças a Deus não tirei a roupa para dormir, assim se morresse iam me achar vestida decentemente.
O medo começou a se tornar raiva. Raiva da situação, raiva da ousadia de alguém infligir esse medo em mim, raiva de eu ter de machucar alguém para me defender.
E irada comecei a por em prática meu plano. Primeiro desencostei a cama tentando fazer o mínimo de barulho possível, depois fui silenciosamente até a cozinha e peguei o rolo de macarrão de madeira.
Com o pesado pau de macarrão em punho, fui até a sala, abri a porta e aguardei escondida que o ladrão entrasse por ela, assim eu poderia golpeá-lo, de preferência na cara, em cheio. Um único golpe, como uma martelada de abate de bois.

Foram segundos intermináveis, escutando os passos se aproximarem e pararem na soleira da porta. E agora? E se ele não entrar? Outros segundos intermináveis sentindo a presença dele parado, sem conseguir enxergar nada. O que fazer? Elemento surpresa! Isso!  Agora é tudo ou nada! Vou pular na frente dele berrando como um ninja para assustá-lo e logo em seguida meto o rolo na cara dele. Não vai saber nem o que o atingiu! E bem na hora que pulei gritando feito louca a energia voltou e a luz que iluminava a porta acendeu, bem a tempo de eu me deparar com uma vaca, que me olhava impassível como quem perguntava: “O que essa louca tá fazendo?” 

Convenções


Não sei o que acontece com as numerações de roupas e sapatos hoje em dia, mas o certo é que está ocorrendo um problema imenso: ou a população está aumentando de tamanho ou as roupas e sapatos estão sendo feitos para pigmeus desnutridos.
Durante muito tempo sofri com o maldito rodízio de carros. Sempre deixei o dia do rodízio para ir visitar sítios e fazendolas fora de São Paulo, assim conseguia sair de madrugada, bem antes do início do horário da proibição absurda e voltar antes do início do horário da tarde. Só que muitas vezes isso não dava certo e eu acabava tendo de fazer hora em algum lugar pelas estradas.
E foi num desses dias que fui parar num shopping na Castelo Branco, com cerca de três horas para matar naquele lugar.
Lembro-me de que o shopping não era muito grande, sequer possuía um cinema, portanto comecei com uma visita ao toalete com direito a um “banho de gato” com lencinhos perfumados a fim de camuflar o cheiro de estábulo, bem como prender o cabelo novamente, passar um batonzinho e lá se foram 15 minutos. Em seguida, sentei-me numa lanchonete e fiz uma farta e demorada merenda. Contudo, comendo sozinha, sem falar com ninguém, quão demorado pode ser um lanche? Outros 15 minutos! E agora? O que fazer para matar as 2 horas e meia que restavam? Comprar um livro e começar a lê-lo? E assim saí andando, olhando as vitrines e tentando me lembrar se precisava de meias, talvez roupa ou acessório para alguma festa iminente, ou seria um presente?  Quem faz aniversário este mês mesmo?
O certo é que passei muitas vezes pelas mesmas lojas e acabei parando na frente de uma de sapatos masculinos hipnotizada por um par que passariam bem por um Oxford feminino. E esse com certeza teria do meu tamanho! Além de ser a metade do preço do similar feminino! Será que alguém perceberia que se tratava de um exemplar masculino?
Fui tomar um café para pensar no assunto, quando surgiu outro problema: como pedir o sapato e experimentá-lo já que se eu comprasse sem prová-lo e não servisse iria ficar complicado voltar lá tão cedo para trocá-lo, visto que meu trabalho para aquelas bandas já havia terminado.
- Oi, moço, tem número 39? E 40? Que cores? Aceita cartão?
Agradeci e saí da loja. Cadê a coragem?
Mas menina e aquele papo de que você não pode se deixar levar pela opinião dos outros? De que quem paga suas contas é você e por isso não deve satisfações a ninguém? Cadê a bandeira agora? E os anos de terapia? E aí? Vai amarelar mesmo?
Rodopiei nos calcanhares e voltei na loja, irrompendo segura de que nada nem ninguém poderia impedir a compra.
- O senhor me traz um 39 e um 40 desse aqui? Preto.
Sem nem olhar para o lado, sentei-me, tirei minhas botas sujas de barro e fiquei esperando para experimentar os sapatos. Só então me dei conta que estava com meias cheias de carrapicho de capim e respingadas de lama e algo mais, que levantava um cheiro característico de chulé com bosta de vaca.
Meu Deus! E agora? Sair correndo? Comprar sem experimentar como se fosse um presente? Mas eu já estava descalça e o homem já estava voltando com os sapatos.
Não dava mais tempo para qualquer reação a não ser encarnar o papel de que tudo aquilo era perfeitamente normal e dentro do script. Assim, tirei as meias grossas, calcei os sapatos novinhos e com a cara mais deslavada optei por um dos tamanhos.
Enquanto o vendedor foi fechar a compra, lentamente vesti as meias sujas, as botas enlameadas, olhando em volta com o rabo do olho. Aparentemente, ninguém havia prestado atenção ao que estava acontecendo comigo. Graças a Deus! Rapidamente, fui pagar a conta esticando a mão com o cartão, sem nem olhar para a moça do caixa. Só ao sair da loja que vi as pelotas de barro e a mancha de lama que ficou no carpete da loja.
Já fora do lugar, o coração a mil como quando aprontava escondida dos pais, nada importava mais, pois havia comprado o calçado e vencido todas as convenções sociais impostas.
É claro que o sapato ficou um tempão guardado no armário, já que comprá-lo numa loja desconhecida, com um vendedor anônimo foi até fácil, mas exibí-lo em público já seriam outros quinhentos!
Eis que um dia surgiu uma oportunidade para usá-lo numa reunião familiar, assim o mico, se houvesse, ficaria em casa. E o melhor de tudo é que minha irmã, a patrulheira da moda, que sempre me mede de cima a baixo, não iria.
A fim de tirar a atenção dos sapatos, caprichei no cabelo, na maquiagem, no colar e brincos e fui.
Como a vida não facilita muito quando é para nos ensinar, foi exatamente a minha irmã que abriu a porta da casa da minha prima. Seu outro compromisso havia sido desmarcado e ela resolveu aparecer na reunião familiar.
Após me olhar de cima a baixo, parou nos meus sapatos.
- Sapatos novos?
- É.
- Onde você comprou?
- Numa lojinha no interior.
- Bonitos. Gostei.
A verdade é que apesar dos meus esforços para tirar a atenção do meu sapato, eles acabaram sendo muito comentados e elogiados. Lógico que nunca contei que eram masculinos. E depois disso, comprei outros pares, bem como camisas masculinas, que ficam um charme com jeans.

Exibo todos os artigos com garbo e quando me perguntam onde comprei logo penso: sabe de nada inocente!