Com a pilha de caixas da mudança já no
meio da sala, despedi-me dos carregadores e fechei a porta do meu novo lar.
A cerração de início da noite parecia
acentuar mais ainda o frio cortante de julho, fazendo-me ansiar por uma casa
quentinha e adiando para o dia seguinte a inspeção dos limites da imensa
propriedade. Para aquecer aquele projeto de lar ainda sem tapetes, cortinas e
com tudo atulhado pelos cantos só mesmo acendendo um foguinho. Ademais, minhas
mãos doíam de frio que parecia passar através da roupa até atingir meus ossos e
congelá-los.
Essa era a minha terceira mudança nesse
ano e a essa altura tudo havia sido empacotado a esmo, já que muitas caixas da
mudança anterior nunca tinham sido abertas ou completamente desfeitas por falta
de tempo ou espaço para guardar o que havia dentro.
O fato é que a primeira providência
seria pegar madeira para acender a lareira e o fogão a lenha para esquentar a
casa. Corri para o depósito que ficava embaixo do terraço. Como colocar a mão
num lugar escuro que poderia ter algum bicho peçonhento? Agora morava sozinha
literalmente no meio do mato, a 20 km da cidade e 5km do vizinho mais próximo. Portanto
cuidar-me era essencial!
Tremendo de frio e tentando me lembrar de
onde tinha posto a lanterna, fiquei parada um tempão na frente do depósito até
que a sensação de que alguém ou algum bicho me espreitava encoberto pela
cerração densa atrás de mim ficou insuportável. E agora? Corri para dentro de
casa e me tranquei até os dentes, tentando ver através das venezianas o que
havia lá fora.
Um silêncio tumular parecia piorar a situação,
até que através da janela da sala vi uma família de gambás sair correndo do
terraço e se perder no meio da neblina.
Ufa! Taí a assombração!
Como não achei a lanterna, mas achei
velas, fui de novo ao depósito com uma que não adiantou muito, mas consegui ver
que além das teias de aranha, não havia mais nada ou pelo menos nenhum olho de
bicho brilhou com a claridade. Assim, fui puxando os tocos de madeira do meio,
onde as aranhas não estavam e enchendo os cestos. Quando comecei a encher o quarto
cesto escutei um som baixo, como um guincho abafado e uma pilha de madeira
rolou para fora. Meu Deus! Tem um bicho aí! Correr? Será que não é pior? Ficar?
E se for uma cobra? Vai me atacar com certeza!
Bem devagar fui me afastando, sentindo
todos os pelos do meu corpo arrepiados. Assim que estava a uma distância que
julgava segura, percebi que se corresse para casa iria passar um frio danado
porque todos os cestos de lenha estavam ainda ali. Então, quase sem respirar,
sentindo o coração na boca, fui me agachando lentamente até que vi um par de
olhos brilharem no lusco-fusco da vela. Jesus! Que bicho é esse? Olhos muito
grandes para ser uma cobra, cabeça muito chata para ser um roedor. O certo é
que por longos 10 segundos, a criatura e eu ficamos nos encarando até que ela
saiu correndo, rastejando, passando bem ao meu lado e sumindo na cerração. A
escuridão associada à velocidade do animal e ao meu medo, só me deixaram ver um
vulto preto rente ao chão.
Credo! Nessa hora senti até meus cabelos
em pé!
- Meu Deus! Onde fui amarrar minha
égua?! Perguntei enquanto carregava os cestos para dentro de casa.
Caramba! Chega de sair de casa no
escuro! Essa lenha é suficiente para aquecer a casa enquanto arrumo o mínimo
necessário para poder comer e dormir.
Tão logo cheguei perto da lareira pensei
escutar uma movimentação. Claro! Já estava ouvindo até alma penada mesmo!
Larguei a lareira e fui procurar meu aparelho de som que logicamente estava na
última caixa que abri e que não continha os CDs.
Pronto! Com o rádio ligado na única
estação que sintonizava, voltei para a lareira arrumando cuidadosamente a lenha
entremeada de jornal para colocar fogo ao som de um pastor inflamado que
pregava contra as armações do capeta. Três estadões de domingo depois, a casa
estava cheia de fumaça e fogo que é bom, nada!
Se o cramulhão existisse mesmo, aquela
seria uma boa hora para dar o ar da graça e me dar um pouco do fogo dos
infernos.
E agora? Rapidamente abri a janela da
sala, o basculante do banheiro e da cozinha e ao voltar para a lareira escuto
três barulhos surdos de algo caindo pela chaminé. Quando olho, eram três
morcegos intoxicados com a fumaça.
Bem zonzos, praticamente sem ar, eles se
debatiam em meio à lenha e às cinzas de papel queimado, enquanto eu estava
paralisada no meio da sala, já que tenho pavor de ratos e tudo que lembram eles.
Afinal de contas, morcegos são ratos com asas. Num esforço hercúleo, consegui
correr para a cozinha e me trancar lá.
Só quando me senti segura é que consegui
raciocinar: tinha água e comida. Contudo, não tinha lenha, não tinha banheiro,
não tinha cama, não tinha cobertor, não tinha sequer telefone e tinha muito
frio. E agora? E se eles se enfiassem nos quartos ou mesmo no banheiro que
estavam abertos? Ou nas caixas?
Com muito medo, pé ante pé, munida de
uma vassoura e com o casaco cobrindo a cabeça fui olhar se eles ainda estavam
na lareira. Que nada!
Socorro! Onde eles se enfiaram?
Daí que escutei o bater de asas de um
deles e vi aquele monstro vindo em minha direção. Como eu era o único obstáculo
entre ele e os quartos, tinha de pensar rápido e pensei! Abri a porta da frente
e usando a vassoura como uma raquete, joguei o bicho para fora com um golpe
certeiro. Força, Karin, que só faltam dois! Mal olhei em volta e vi os outros
dois pendurados de cabeça para baixo na grade da janela da sala, bastando só
fechar a janela. Entretanto, cadê a coragem de chegar tão perto assim? Primeiro
corri fechar os quartos e banheiro, na esperança de que eles fossem embora
sozinhos, mas que nada! O jeito era usar a vassoura, derrubando-os com um golpe
e fechando a janela com outro. Teria de ser uma ação rápida, em dois
movimentos, sem falhas. Mal fui chegando com a vassoura, os dois voaram para
longe e eu consegui fechar a janela. Mas e se eles voltassem a entrar pela
chaminé? Só havia um jeito: botar fogo a qualquer custo!
Completamente em pânico, abri uma lata
de óleo de soja e derramei sobre os tocos de madeira, risquei o fósforo e vi a
língua de fogo se espalhar pela lenha. Desta vez não houve fumaça, mas o cheiro
do óleo queimado era quase insuportável.
Já completamente ensopada de suor,
sentei-me no chão frio, em frente à lareira, pensando que já haviam se passado
quase duas horas e eu ainda não tinha onde dormir, nem o que comer. Todavia já
havia resolvido não acender o fogão a lenha. Vai saber que bicho poderia haver
na sua chaminé!
Puxei uma caixa para perto de mim e
comecei a olhar o que tinha dentro a procura de pratos, copos, panelas, mas
achei as de roupas de cama.
Tão logo decidi a posição da cama no
quarto, arrumei–a assustando-me com o estrondo do trovão. Chuva? Que delícia
dormir com o barulhinho da chuva!
Finalmente achei as caixas da cozinha e
me pus a fazer uma sopinha sob os clarões dos relâmpagos e o barulho dos
trovões que pareciam estar cada vez mais próximos. Um vento forte assobiava ao
encontrar as janelas e finalmente caiu a chuva, pesada, forte.
Naquela época o telefone era ainda de
disco e possuía uma campainha estridente, tal qual um sinete. Quase derrubei o
prato cheio de sopa que segurava quando o telefone tocou uma só vez, ao mesmo
tempo que vi um clarão imenso através da janela. Que susto!
Ao levantar o fone do gancho, estava
mudo. Que beleza! Agora só faltava acabar a luz!
Cansada das bobagens ditas pelo pastor
evangélico no rádio, resolvi dar uma corridinha até o carro que estava
estacionado na porta para pegar um CD e assim abri a porta e corri. Um pé lá e
outro cá. Tão rápido que a chuva apesar de intensa praticamente não me molhou.
Pronto! Sonzinho maneiro, sopa quentinha
e uma lareira aconchegante. O que mais eu poderia querer? Sentei-me no chão,
próximo à lareira e comecei a degustar meu néctar quando pressenti que estava
sendo observada. Bem devagar fui me virando para ver quem ou o quê estava me
mirando. Nada!
Para, Karin, que você já está ficando
paranoica!
Voltei para a minha refeição quando
escutei um estampido como de um tiro dentro da sala. De novo não! O que será
agora?
Novo estampido. Larguei o prato e corri
para pegar a vassoura, mas assim que entrei na cozinha um trovão de arrasar
quarteirão me assustou e logo em seguida a luz apagou. Instintivamente fechei a
porta da cozinha. E agora? Sem luz, sem telefone, sem vizinhos... Quem chamar?
Como saber quem ou o quê estava fazendo esse barulho?
A verdade é que sozinha, sem luz e com o
silêncio sepulcral que fazia, comecei a perceber que cada vez que tinha um
estampido na sala, outro “respondia” do lado de fora da porta da frente.
E de novo, pé ante pé, fui até a sala
com uma vela acesa numa mão e a vassoura na outra. Olha daqui, olha dali e achei
num canto um imenso sapo boi, preto, que logo tentou fugir assim que me
aproximei. Ai que ódio desses bichos! Novamente com a vassoura em punho fui
empurrando ele até a porta e quando a abri ele deu um salto enorme para fora.
Ufa! Cansei! Chega de emoções por hoje!
Vou para cama!
Com certeza verifiquei as trancas,
apaguei tudo que lembrava estar aceso antes de acabar a luz e me larguei na
cama, de roupa e tudo, exausta.
Só que caipira de cidade sente falta do
trânsito, dos buzinaços, dos carros com som alto, das gritarias nas ruas e
aquele silêncio me incomodava, me fazia prestar atenção como que se procurasse
um barulho familiar para embalar meu sono.
Num dado momento comecei a ouvir passos
do lado de fora da casa que iam da porta de entrada até o lado oposto que era a
porta da cozinha.
Tentei olhar pela veneziana do quarto,
mas a chuva já havia dado trégua, assim como os raios que já não iluminavam
mais a noite sem lua. Lá fora só o breu total.
Vai dormir, Karin, que você já está
ouvindo coisas!
Quietinha, prestei atenção e não ouvi
mais nada. Tá vendo, sua doida! Não é nada!
Relaxei, me ajeitei na cama e quando já
ia me entregar senti que mexeram na porta da cozinha. Num pulo já estava na
porta do quarto procurando pela chave para trancá-la. Cadê? Só aí me dei conta de
que nenhuma das portas internas tinha chave. Sem pensar muito, puxei a cama e a
encostei no vão entre o armário e a porta, mas ainda dava para abrir uma fresta
suficiente para alguém enfiar uma mão armada.
Diante disso desabei e comecei a chorar
quando senti que os passos haviam parado debaixo da minha janela e logo depois
começou um barulho de roçar, com leves batidinhas, como se alguém estivesse
tentando abrir a pesada veneziana de madeira. Claro que engoli o choro! Maldita
hora que decidi vir morar aqui!
Com o coração na boca, as veias do
pescoço pulsando de medo, escutei os passos darem a volta na casa e irem forçar
a porta da sala.
Comecei a rezar. A esta hora, sem luz,
telefone, vizinhos, parentes, só Deus mesmo! E os passos voltaram para a porta
da cozinha. Mais atenção e senti que eram passos pesados, lentos e ritmados e
ao voltarem a passar sob a minha janela consegui vislumbrar um vulto preto,
esquisito. Seria um gordo baixinho andando agachado?
Bom, o que fazer? Esperar a casa ser
invadida? Atacar de surpresa? Graças a
Deus não tirei a roupa para dormir, assim se morresse iam me achar vestida
decentemente.
O medo começou a se tornar raiva. Raiva
da situação, raiva da ousadia de alguém infligir esse medo em mim, raiva de eu
ter de machucar alguém para me defender.
E irada comecei a por em prática meu
plano. Primeiro desencostei a cama tentando fazer o mínimo de barulho possível,
depois fui silenciosamente até a cozinha e peguei o rolo de macarrão de
madeira.
Com o pesado pau de macarrão em punho,
fui até a sala, abri a porta e aguardei escondida que o ladrão entrasse por ela,
assim eu poderia golpeá-lo, de preferência na cara, em cheio. Um único golpe,
como uma martelada de abate de bois.
Foram segundos intermináveis, escutando
os passos se aproximarem e pararem na soleira da porta. E agora? E se ele não
entrar? Outros segundos intermináveis sentindo a presença dele parado, sem
conseguir enxergar nada. O que fazer? Elemento surpresa! Isso! Agora é tudo ou nada! Vou pular na frente
dele berrando como um ninja para assustá-lo e logo em seguida meto o rolo na
cara dele. Não vai saber nem o que o atingiu! E bem na hora que pulei gritando
feito louca a energia voltou e a luz que iluminava a porta acendeu, bem a tempo
de eu me deparar com uma vaca, que me olhava impassível como quem perguntava:
“O que essa louca tá fazendo?”