domingo, 29 de julho de 2018

Desatenção


- Você viu por onde anda o Sérgio?
- Não. Faz muito tempo que não o vejo.
- Pois é! Ando preocupado porque ele anda faltando às nossas peladas das quartas e quando isso acontece é porque ele não anda bem.
- Relaxa. O Sérgio é assim mesmo. Sempre dramático. Adora chamar a atenção, principalmente da mãe e da namorada. Já o vi nesse estado outras vezes. Ele some, curte sua fossa e depois melhora.
Após uns quinze dias o telefone toca:
- Liga a TV rápido! No jornal das sete!
- Putaqueopariu!
Ao fundo ouve-se o jornalista: “ Sérgio Alves, bancário de 32 anos, mata a namorada com um tiro e se mata em seguida...”

segunda-feira, 26 de março de 2018

Nojo e prazeres


Toda minha infância foi passada no Guarujá. Lá meus pais, tios e avós compraram apartamentos no mesmo prédio e assim éramos quase os donos do lugar todo. Além disso, nosso edifício ficava numa rua de apenas uma quadra, na ponta da praia e assim todas as tardes os zeladores dos três únicos edifícios da quadra fechavam a rua com cavaletes e as crianças das ruas próximas vinham para a farra.
Queimada, jogo de taco, esconde-esconde, guerra de mamona. Havia de tudo um pouco já que cerca de 50 crianças se juntavam nessas tardes. Os pais acompanhavam tudo dos terraços dos apartamentos e de lá mesmo resolviam as querelas com um assovio forte, desses que se faz com dois dedos na boca.
Naquela época esse assovio por si só dizia tudo: se estivéssemos fazendo algo impróprio, parávamos; se estivéssemos brigando, parávamos. Era o ponto final, sem explicações, sem reclamações, obedecíamos e fim!
Só agora me dei conta de como a educação era homogênea naquele tempo, já que num universo de 50 crianças diferentes todas entendiam o assovio de alerta. Era um consenso que os mais velhos sempre tinham razão e deviam ser respeitados.
Além disso, naquele sistema de convivência todos eram tios de todos, já que chamávamos os pais dos outros de tio e tia.
Minha prima Amélia é três anos mais velha que eu e foi a segunda da família a arranjar um namoradinho. A mim coube ser a “vela”, papel que desempenhei com louvor e do alto dos meus 10 anos de idade senti-me como se estivesse salvando o mundo de uma hecatombe quando contei para minha avó que ela e o namoradinho da mesma idade tinham tomado coca-cola no mesmo canudinho. Eca! Que nojo!
Desde muito cedo meus pais me ensinaram sobre o mundo das bactérias e outros parasitas e por isso sempre fui instruída a não compartilhar roupas, pentes, copos, talheres, toalhas, escovas de dente, com quem quer que fosse. Mesmo em casa esses compartilhamentos não existiam.
Daí o meu nojo com relação ao canudinho tão romanticamente compartido.
Entretanto, assim como os filmes do Elvis que passavam na sessão da tarde, os amores eram de verão e no ano seguinte o namoradinho da minha prima já era outro e o do verão passado, o Fábio, quis dividir o canudo e a coca-cola comigo. Eca! Continuava com nojo!
Pudera! Aos 11 anos vivia um impasse tremendo: embora fosse menina-moça desde os nove e já usasse sutiã, ainda brincava de bonecas quando estava sozinha em casa.
Já o Fábio era um menino maduro, que aos 14 anos já havia ido à Disneylandia sozinho na excursão da vovó Stella.
- Mãe, se um menino me pedir em namoro, o que eu faço?
Lembro-me de que a cozinha onde almoçávamos naquele momento ficou num silêncio mortal por uns trinta segundos, quando meu pai resmungou algo em alemão, levantou-se e saiu, deixando o prato inteirinho na mesa.
- Você responde que é muito jovem ainda para namorar.
E assim fiz, mas o Fábio não era de desistir: sempre dava um jeito de me colocar no time dele de queimada, sempre me protegia das “mamonadas” e trazia coca-cola com dois canudos.
Certo dia, já no fim das férias, uma de minhas primas  fez uma festa de aniversário e convidou todo mundo. Enquanto o hit daquele verão, “Os embalos de sábado à noite”, rolava a todo volume na vitrola, tinha gente até no corredor e na lavanderia, dançando como John Travolta. Claro que todos tínhamos assistido ao filme e sabíamos os passos de cor. Naquela noite o Fafá foi tão explícito em suas intenções segurando minha mão na frente de todo mundo que a meninada não deixou barato, fazendo comentários e troças a nosso respeito.
O grande problema para os meninos era enfrentar meu pai, que havia sido campeão olímpico de luta greco-romana na categoria peso pesado não havia muito tempo e, portanto, era muito parecido com o Arnold Schwartznegger: loiro, alto, olhos cinza e 120 kg de puro músculo.
Ao tocar uma música lenta, o Fafá logo me tirou para dançar agarradinho e aproveitou para dar um beijo no meu pescoço, deixando-me petrificada com o que senti. Como um beijo no pescoço podia dar cócegas lá, nos países baixos?
Mais um rodopio e outro beijo no pescoço. Ruborizei com a sensação e desencostei dele dando de cara com meu pai.
Nessa hora a festa parou e todo mundo se afastou da gente.
Logo, meu primo gritou lá do fundo:
- Corre, Fábio, que se o tio te pega, te mata numa soprada só!
O Fábio não era de correr. Imagina! O único na turma que foi sozinho para o estrangeiro!
- Tio, eu quero namorar com ela. Você deixa?
Papai sério virou para mim e perguntou se eu queria namorar. Acenei que sim com a cabeça, afinal tinha gostado daquela sensação que havia experimentado minutos antes.
- Moleque, eu vai fala um coisa para você: você pode namora ela, mas se você tira essa seu coisa de dentro do seu calça, eu vai corta fora e joga pra cachorro comer. Entendeu?
Logo as férias acabaram e com elas o namoro. No outro ano, o Fafá foi fazer intercâmbio no exterior e eu me apaixonei pelo filho da delegada.  

segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

Morreu de quê?



Morreu de quê? De impotência. A impotência de vencer o medo da mudança a matou.
Quando a cegueira nos impede de ver a pequena distância que existe entre o imenso abismo que imaginamos existir e a realização de nossos sonhos, só nos resta o desespero e a morte. Como se a morte fosse solução para algum problema!
Nem sei bem por que fui, uma vez que não nos falávamos há algum tempo. Por que mesmo paramos de nos falar?
Já à beira do caixão tentei reconhecer aquela pessoa que ali jazia: cabelos muito mais brancos – desleixo? Moda atual? -, pele muito mais vincada pelo tempo, ar cansado, sofrido. Meu Deus! O que houve com aquela pessoa tão vaidosa, tão “perua”?
Diferentemente dos velórios convencionais, não havia ninguém chorando copiosamente. Uma ou outra lágrima teimava em fugir, mas nenhum desespero, nenhuma falta histericamente expressada. Será esse o fim de quem escolheu uma vida à margem dos padrões sociais vigentes?
Olho a amiga de uma vida, real depositária dos últimos desejos, flanando pela sala como uma diva, com dois celulares à mão, ora falando em um, ora em outro, recepcionando as pessoas como a anfitriã de uma festa. Nem mesmo a tal “amiga-irmã” sentiu a partida repentina?!
Nessas horas penso como é a vida, como é difícil enxergarmos aquilo que está a dois palmos de nossos narizes! Que loucura!
Morreu incapaz de lidar com o medo de ficar sozinha, já que a tia de 98 anos que a criara estava internada, no limiar de sua vida.
Uma embolia a levou um mês antes da tia. Um êmbolo de medo, que se formou a partir de sua incapacidade de enxergar que no fundo, mas bem lá no fundo, estamos todos sozinhos e preenchemos nossas vidas com um milhão de afazeres e outro montão de afetos feitos de verniz para não termos de nos deparar com esse vazio. Ou será que finalmente enxergou e se desesperou, achando-se sem saída?
Uma pena! Aos que têm a coragem de encarar seu mundo interior ganham a liberdade plena. A liberdade de não ter mais medo de nada, de não sentir mais o vazio, de não se sentir mais sozinho, de ansiar por novas aventuras.

Rezo por ela, pedindo que seja recebida por amigos e que acabe entendendo todos os porquês de sua vida.