Depois
de esperar meses por uma mesa num restaurante badalado e muito recomendado,
finalmente o dia chegou.
Claro
que nesses dias a lei de Murphy sempre se impõe e a correria para não perdermos
a hora e consequentemente a reserva foi grande.
O
restaurante era deslumbrante, com uma decoração moderníssima, de muito bom
gosto, assinado por um arquiteto mundialmente famoso.
Nossa
mesa ficava bem junto a um janelão de onde podíamos ver a cidade e suas luzes e
do outro lado tínhamos a vista do salão todo.
Ainda
esbaforidos, acelerados pela correria, nos sentamos e enquanto meu marido se
desvencilhava de um telefonema de negócios, meu olhar logo foi percorrer o
salão em busca de alguma história. Aliás, esse é meu esporte favorito: observar
os outros, tentar adivinhar quem são, o que fazem ali, inventar histórias. Os
meninos adoram participar, mas maridão já não, talvez porque tenha se habituado
a manter o olhar do estranho no ninho em paragens distantes, muitas vezes
perigosas, uma vez que porque ele viaja o mundo, já se viu em meio a guerras,
revoluções, ataques terroristas, explosões de violência impensáveis como a
invasão e ataque de um elefante a um restaurante paquistanês. Portanto, seu
olhar é sempre de alerta, procurando qualquer sinal de violência iminente.
Enquanto
ele examinava a carta de vinhos, fiquei olhando em volta, reparando em
expressões e trejeitos, que é de onde se pode extrair alguma idéia dos
acontecimentos quando não se pode ouvir a conversa ou não se entende o idioma.
Nesse
flanar do meu olhar, dei de cara com um par de olhos azuis, cristalinos como o
mar, que me remeteram a outros olhos azuis bem famosos, os de Frank Sinatra. Só
que estes me fitavam lânguidos e os do Sinatra nunca vi ao vivo. Estremeci,
logo parei de olhar e displicentemente voltei-me ao meu marido mais para saber
se ele havia visto a troca de olhares do que para saber se já havia escolhido o
vinho.
Pedidos
feitos, iniciamos nosso bate papo como duas comadres, entremeado por mais duas
ligações de negócios, até que a comida chegou.
-
Aquele cara não para de olhar pra você!
-
Cara? Que cara?
-
O que está sozinho na mesa ao lado, de olhos azuis...
-
Tá brincando! Tá olhando nada!
-
Tá olhando sim! Aliás, como é mesmo a brincadeira que você faz com as crianças?
Adivinhar a história das pessoas? Pois bem, qual a história desse aí?
Enquanto
comíamos comecei a tecer uma história sobre um homem que estava perdido numa
cidade estranha, sem memória, com muito dinheiro no bolso. Morto de fome, havia
resolvido entrar naquele restaurante para comer. O restaurante não lhe era
estranho, parecia que o conhecia bem, e assim em busca de lembranças começou a
encarar as pessoas...
-
Não sei não. Mas acho que essa história não combina com ele.
-
Mas eu não acabei ainda!
E
continuei contando que na verdade o homem era um mafioso russo...
-
Peraí! Russo???? Moreno assim?
-
Claro! Ele foi criado pelo chefão da máfia russa depois que seus pais foram
mortos pela própria máfia... Fica frio
que vai ter o tiroteio e as explosões de que você gosta. Eu chego lá!
E
assim fomos jantando e rindo com a história que estava sendo criada ali sobre
um mafioso russo, muito sedutor, desmemoriado, que fazia seus negócios sujos
naquele restaurante. E conforme a história
evoluía, ríamos mais e vez ou outra olhávamos para o homem que continuava a me
encarar, agora descaradamente.
Mesmo
sem mirá-lo diretamente, sentia o seu afrontamento. Assim que pediu o café, meu
marido se levantou para ir ao banheiro, deixando-me sozinha à mesa. Por
longuíssimos 10 segundos hesitei em olhar para o homem, não queria encorajá-lo
a qualquer atitude, mas ao mesmo tempo fiquei indignada com a insistência dele,
mesmo na frente do meu marido. Sorte que o Günther se diverte com essas
situações. A única vez que o vi indo para cima de alguém foi quando o irmão
cearense de uma amiga minha me deu “um cheiro” no pescoço.
A
verdade é que não resisti, sentia o olhar dele me queimando e assim que dei uma
espreitadela, ele se levantou.
Pronto!
E agora? Seria um escândalo? Como me desvencilhar do inoportuno? Mas que
chatice! E o Günther? Ai meu Deus! Socorro!!!!!!!!
Praticamente
em pânico virei-me para o janelão fingindo estar vendo a paisagem noturna e
rezando para o homem ter se levantado para ir embora ou ao banheiro.
Que
nada! Com o canto do olho percebi-o parado de pé me fitando.
-Querida,
sabia que preconceito é feio?
E
com um gestual mais afetado ainda continuou:
-
Você e aquele seu bofe ficaram me gozando a noite inteira! Isso não se faz!
E
com as duas mãos na cintura arrematou:
-
Eu achei o seu colar de jade di-vi-no, não pude tirar meus olhinhos dele a
noite inteira. Pena que esteja no pescoço de uma pessoa tão feia. Pronto falei!
Passar bem!
Boquiaberta,
sem saber o que dizer ou fazer, só consegui seguí-lo com os olhos enquanto ele
se dirigia para a saída até que vi meu marido voltando morrendo de rir.
-
Ele era gay?!
-
Mas é claro que era! Mafioso russo?! Nem em mil anos!