Depois
de uma viagem longa, cheia de incertezas e sentimentos contraditórios, chego em
casa. Na verdade minha nova casa, quiçá nova vida. Abro a porta do apartamento com a cabeça
cheia de pensamentos, de medos, de planos, de dúvidas. As últimas DRs via skype
ainda ecoavam na minha mente e uma cobrança em particular ainda me incomodava
muito: “Você não assume seu papel de minha esposa”. E assim eu me transformava
na culpada pelos desatinos da ex, nosso maior motivo de dissabores.
Que
papel seria esse? Ali, parada no meio da sala, começo a olhar em volta e vejo
que tudo ainda tinha o dedo dela e senti-me intrusa. É, é isso! Uma penetra que
toma todo o cuidado para não chamar a atenção, para não atrapalhar, para não
ser posta para fora da festa.
Num
gesto automático, quase inconsciente, derrubo da mesinha o vaso de cristal,
provável presente de casamento, que se parte em mil pedaços. Já na cozinha,
abro a geladeira e me pergunto por que compramos aquela marca de água, sabão em
pó, detergente, molho de tomate, se ele só descobriu o caminho da cozinha e
adjacências comigo. Assim, num delírio louco, chamo a zeladora e abrindo os
armários de comida da cozinha peço que ela leve tudo que havia dentro.
-
Tudo, senhora? – perguntava a incrédula imigrante romena já cinquentona.
-
Sim, tudo! Só verifique a validade porque pode haver alguma coisa vencida.
Depois
de um banho bem demorado, daqueles que nenhum europeu aprova, pego a cachorra e
saio para uma volta, além de jantar. A cabeça ia longe, parte resolvendo que papel
seria esse que deveria assumir e que consequências ele traria; parte resolvendo
se queria mesmo assumí-lo. Como precisava ainda atravessar três longos dias até
que ele chegasse, resolvi começar uma mudança externa, arrancando todos os
resquícios dela da casa. Quem sabe assim, tornando-me efetivamente a senhora do
castelo, conseguiria arrancá-la de nossas vidas.
No
dia seguinte bem cedinho pego a cachorra e saio para tomar café na rua. Propositalmente
deixo apenas um recado para ele avisando que estava tudo bem e que iria sair
sem celular porque havia me esquecido de carregar a bateria. O que mais adoro
nos lugares civilizados é que minha fiel amiga pode me acompanhar a qualquer
lugar e assim atravessamos a cidade de metrô até um tapeceiro para combinar a
nova forração dos sofás, bem como cortinas novas. Com uma parada estratégica no
centro comercial, compro roupas de cama, mesa e banho. Sinto o dia passar lento
– ou eu é que estaria acelerada? – já que nem era hora do almoço ainda e eu já
havia resolvido tantas coisas. Por isso, depois de um sanduíche de salsichão
comido na rua mesmo, fui escolher papeis de parede novos e porque não um novo
tapete para a sala? Chego em casa eufórica, querendo falar com alguém, querendo
mostrar o que comprei, querendo compartilhar minhas ideias para revolucionar a
casa, sem ter com quem. E como mágica o telefone toca: é ele! Nossa ligação
mental, telepática, espiritual ou seja lá o que for é forte e embora o
estivesse evitando até decidir o que eu realmente queria, ouvir a voz dele me
trouxe saudades.
Logo contei minhas peripécias com a casa e do telefone passei ao computador para mostrar através da câmera o que havia comprado e mais uma vez compartilhamos tudo através de uma máquina o que acabou me levando a um estado de frustração já que com as viagens constantes dele, nossa vida sempre acontece na telinha do computador, como uma novela da Rede Globo.
Logo contei minhas peripécias com a casa e do telefone passei ao computador para mostrar através da câmera o que havia comprado e mais uma vez compartilhamos tudo através de uma máquina o que acabou me levando a um estado de frustração já que com as viagens constantes dele, nossa vida sempre acontece na telinha do computador, como uma novela da Rede Globo.
O
relógio marcava a parada do tempo como se Cronos quisesse compensar minha
decepção com horas suficientes para encarar um supermercado antes do fim do
dia.
Fui,
embora sem muita vontade, mas ao me ver no mercado, como uma criança num parque
de diversões, comprei marcas novas de tudo: do sabonete ao molho de tomate.
Contudo o melhor foi o sentimento de satisfação perversa que se apoderou de
mim. Minha criança birrenta havia sido
satisfeita! Ao chegar em casa caí na cama, exausta, mas muitíssimo vingada.
Mais
um dia chegou e ainda de pijamas comecei a tirar tudo dos armários do quarto.
Surpreendentemente acho coisas dela ainda. Roupas, uma caixa de fotos, um vidro
de perfume, um guarda-chuva feminino, cartas de amor. Abro uma e leio até o
fim. Pelo menos ele é criativo e não disse as mesmas coisas para mim. Sem
conseguir ler o resto porque uma onda de ciúmes me tomou por completo, coloco
as cartas de lado e furiosamente tiro tudo dos armários. Choro sentada no chão.
A
campainha toca providencialmente me obrigando a mudar o foco. De pé na porta
dois deuses do olimpo que vieram buscar meus sofás. Tão logo eles saem, me
visto e desço até o subsolo para lavar e secar tudo que havia comprado no dia
anterior satisfazendo minha mania por limpeza e perfumes.
Na
medida em que ia caminhando pelo corredor mal iluminado até a lavanderia do
prédio, fui ouvindo passos que fizeram meu coração acelerar. Quem seria? Um
serial killer? Com uma corridinha, entrei e me escondi atrás da porta da
lavanderia segurando o grito. Os passos pararam na porta e de onde estava vi a
cabeça da zeladora esticada para dentro do recinto. Gargalhei nervosamente.
- A
senhora quer ajuda? – perguntou-me sem jeito.
Estranhei
o oferecimento e meu olhar deve ter me traído.
-
Desculpe, mas fui instruída a ajudar a nova senhora. Nada é da minha conta, mas
a antiga senhora esteve aqui na semana passada, pediu-me a chave e entrou no
apartamento. Não recebi instruções quanto a isso.
Deixei-a
lavando as roupas e fui atrás de um chaveiro.
- A
nova senhora sou eu. Aqui estão as novas chaves do apartamento. Eu vou ligar e
dizer quem pode ter as chaves. Caso contrário, ninguém entra.
Curioso
como isso me trouxe um sentimento de poder descomunal. A tarde transcorreu
arrastada como se o relógio estivesse preguiçoso, dando-me tempo mais que
suficiente para selecionar o que colocar nos armários. Ao mexer nas roupas
dele, senti o cheiro, o perfume dele e mais uma vez a saudade apertou.
Como sempre, como se me vigiasse, o telefone tocou bem nessa hora e tudo que ouvi ao atender foi: “estou com saudades de você”. Mais uma vez chorei deixando-o preocupado do outro lado da linha. Assim que desliguei fui ver o por do sol da minha janela saboreando um vinho. Entre um gole e outro fui pondo ordem nos meus pensamentos e sobretudo nos meus sentimentos o que me levou a perceber que já havia me decidido por comprar a briga e assumir meu papel. Ele já estava tão entranhado na minha vida que não era mais possível nos separarmos. E desta vez quem ligou fui eu e assim que ele atendeu eu disse: “quero você!” e agora quem chorou foi ele.
Como sempre, como se me vigiasse, o telefone tocou bem nessa hora e tudo que ouvi ao atender foi: “estou com saudades de você”. Mais uma vez chorei deixando-o preocupado do outro lado da linha. Assim que desliguei fui ver o por do sol da minha janela saboreando um vinho. Entre um gole e outro fui pondo ordem nos meus pensamentos e sobretudo nos meus sentimentos o que me levou a perceber que já havia me decidido por comprar a briga e assumir meu papel. Ele já estava tão entranhado na minha vida que não era mais possível nos separarmos. E desta vez quem ligou fui eu e assim que ele atendeu eu disse: “quero você!” e agora quem chorou foi ele.
O
terceiro dia foi o pior de todos. Assim que detectei a insônia, desisti de
brigar com ela e parti para trocar o papel de parede do quarto. Incrível as
novidades que tornam o faça você mesmo cada vez mais fácil. Com um pano
umedecido num líquido apropriado, soltei o papel velho e com uma cola super
fácil colei o papel novo. Ao amanhecer havia trocado o papel de todas as
paredes da casa bem como acabado com todo o café da dispensa.
Misteriosamente minha coluna não reclamou e após um banho revigorante, saí com a cachorra para tomar café na rua. A previsão de chegada dele era no fim da tarde o que me dava tempo para preparar a recepção. Passei no mercado, comprei guloseimas, ajeitei a casa, perfumei tudo, fiz comidinha, imaginei mil vezes como o receberia, como o encheria de beijos, como faria amor com ele.
Misteriosamente minha coluna não reclamou e após um banho revigorante, saí com a cachorra para tomar café na rua. A previsão de chegada dele era no fim da tarde o que me dava tempo para preparar a recepção. Passei no mercado, comprei guloseimas, ajeitei a casa, perfumei tudo, fiz comidinha, imaginei mil vezes como o receberia, como o encheria de beijos, como faria amor com ele.
Tão
logo o sol começou a baixar no céu ele tocou a campainha. Meu coração quase
pulou pela boca. Abri a porta correndo e de pé vejo ele, bem mais magro, bem
mais envelhecido, e ao beijá-lo senti a febre. E assim nossa primeira noite foi
no hospital, no isolamento, com suspeita de gripe aviária, já que ele tinha
acabado de chegar do oriente.
-
Vem, deita aqui comigo. Estou com saudades do seu perfume.
E assim,
apertados numa cama hospitalar, sentindo os braços dele em volta de mim,
adormeci tranquila. Tudo estava no seu lugar.