sábado, 14 de junho de 2014

A senhora do castelo

            Depois de uma viagem longa, cheia de incertezas e sentimentos contraditórios, chego em casa. Na verdade minha nova casa, quiçá nova vida.  Abro a porta do apartamento com a cabeça cheia de pensamentos, de medos, de planos, de dúvidas. As últimas DRs via skype ainda ecoavam na minha mente e uma cobrança em particular ainda me incomodava muito: “Você não assume seu papel de minha esposa”. E assim eu me transformava na culpada pelos desatinos da ex, nosso maior motivo de dissabores.
            Que papel seria esse? Ali, parada no meio da sala, começo a olhar em volta e vejo que tudo ainda tinha o dedo dela e senti-me intrusa. É, é isso! Uma penetra que toma todo o cuidado para não chamar a atenção, para não atrapalhar, para não ser posta para fora da festa.
Num gesto automático, quase inconsciente, derrubo da mesinha o vaso de cristal, provável presente de casamento, que se parte em mil pedaços. Já na cozinha, abro a geladeira e me pergunto por que compramos aquela marca de água, sabão em pó, detergente, molho de tomate, se ele só descobriu o caminho da cozinha e adjacências comigo. Assim, num delírio louco, chamo a zeladora e abrindo os armários de comida da cozinha peço que ela leve tudo que havia dentro.
        - Tudo, senhora? – perguntava a incrédula imigrante romena já cinquentona. 
       - Sim, tudo! Só verifique a validade porque pode haver alguma coisa vencida.
Depois de um banho bem demorado, daqueles que nenhum europeu aprova, pego a cachorra e saio para uma volta, além de jantar. A cabeça ia longe, parte resolvendo que papel seria esse que deveria assumir e que consequências ele traria; parte resolvendo se queria mesmo assumí-lo.                  Como precisava ainda atravessar três longos dias até que ele chegasse, resolvi começar uma mudança externa, arrancando todos os resquícios dela da casa. Quem sabe assim, tornando-me efetivamente a senhora do castelo, conseguiria arrancá-la de nossas vidas.
            No dia seguinte bem cedinho pego a cachorra e saio para tomar café na rua. Propositalmente deixo apenas um recado para ele avisando que estava tudo bem e que iria sair sem celular porque havia me esquecido de carregar a bateria. O que mais adoro nos lugares civilizados é que minha fiel amiga pode me acompanhar a qualquer lugar e assim atravessamos a cidade de metrô até um tapeceiro para combinar a nova forração dos sofás, bem como cortinas novas. Com uma parada estratégica no centro comercial, compro roupas de cama, mesa e banho. Sinto o dia passar lento – ou eu é que estaria acelerada? – já que nem era hora do almoço ainda e eu já havia resolvido tantas coisas. Por isso, depois de um sanduíche de salsichão comido na rua mesmo, fui escolher papeis de parede novos e porque não um novo tapete para a sala?                   Chego em casa eufórica, querendo falar com alguém, querendo mostrar o que comprei, querendo compartilhar minhas ideias para revolucionar a casa, sem ter com quem. E como mágica o telefone toca: é ele! Nossa ligação mental, telepática, espiritual ou seja lá o que for é forte e embora o estivesse evitando até decidir o que eu realmente queria, ouvir a voz dele me trouxe saudades.  
                     Logo contei minhas peripécias com a casa e do telefone passei ao computador para mostrar através da câmera o que havia comprado e mais uma vez compartilhamos tudo através de uma máquina o que acabou me levando a um estado de frustração já que com as viagens constantes dele, nossa vida sempre acontece na telinha do computador, como uma novela da Rede Globo.
             O relógio marcava a parada do tempo como se Cronos quisesse compensar minha decepção com horas suficientes para encarar um supermercado antes do fim do dia.
                 Fui, embora sem muita vontade, mas ao me ver no mercado, como uma criança num parque de diversões, comprei marcas novas de tudo: do sabonete ao molho de tomate. Contudo o melhor foi o sentimento de satisfação perversa que se apoderou de mim.  Minha criança birrenta havia sido satisfeita! Ao chegar em casa caí na cama, exausta, mas muitíssimo vingada.
                   Mais um dia chegou e ainda de pijamas comecei a tirar tudo dos armários do quarto. Surpreendentemente acho coisas dela ainda. Roupas, uma caixa de fotos, um vidro de perfume, um guarda-chuva feminino, cartas de amor. Abro uma e leio até o fim. Pelo menos ele é criativo e não disse as mesmas coisas para mim. Sem conseguir ler o resto porque uma onda de ciúmes me tomou por completo, coloco as cartas de lado e furiosamente tiro tudo dos armários. Choro sentada no chão.
              A campainha toca providencialmente me obrigando a mudar o foco. De pé na porta dois deuses do olimpo que vieram buscar meus sofás. Tão logo eles saem, me visto e desço até o subsolo para lavar e secar tudo que havia comprado no dia anterior satisfazendo minha mania por limpeza e perfumes.
            Na medida em que ia caminhando pelo corredor mal iluminado até a lavanderia do prédio, fui ouvindo passos que fizeram meu coração acelerar. Quem seria? Um serial killer? Com uma corridinha, entrei e me escondi atrás da porta da lavanderia segurando o grito. Os passos pararam na porta e de onde estava vi a cabeça da zeladora esticada para dentro do recinto. Gargalhei nervosamente.
              - A senhora quer ajuda? – perguntou-me sem jeito.
               Estranhei o oferecimento e meu olhar deve ter me traído.
           - Desculpe, mas fui instruída a ajudar a nova senhora. Nada é da minha conta, mas a antiga senhora esteve aqui na semana passada, pediu-me a chave e entrou no apartamento. Não recebi instruções quanto a isso.
          Deixei-a lavando as roupas e fui atrás de um chaveiro.
             - A nova senhora sou eu. Aqui estão as novas chaves do apartamento. Eu vou ligar e dizer quem pode ter as chaves. Caso contrário, ninguém entra.
             Curioso como isso me trouxe um sentimento de poder descomunal. A tarde transcorreu arrastada como se o relógio estivesse preguiçoso, dando-me tempo mais que suficiente para selecionar o que colocar nos armários. Ao mexer nas roupas dele, senti o cheiro, o perfume dele e mais uma vez a saudade apertou. 
             Como sempre, como se me vigiasse, o telefone tocou bem nessa hora e tudo que ouvi ao atender foi: “estou com saudades de você”. Mais uma vez chorei deixando-o preocupado do outro lado da linha. Assim que desliguei fui ver o por do sol da minha janela saboreando um vinho. Entre um gole e outro fui pondo ordem nos meus pensamentos e sobretudo nos meus sentimentos o que me levou a perceber que já havia me decidido por comprar a briga e assumir meu papel. Ele já estava tão entranhado na minha vida que não era mais possível nos separarmos. E desta vez quem ligou fui eu e assim que ele atendeu eu disse: “quero você!” e agora quem chorou foi ele.
         O terceiro dia foi o pior de todos. Assim que detectei a insônia, desisti de brigar com ela e parti para trocar o papel de parede do quarto. Incrível as novidades que tornam o faça você mesmo cada vez mais fácil. Com um pano umedecido num líquido apropriado, soltei o papel velho e com uma cola super fácil colei o papel novo. Ao amanhecer havia trocado o papel de todas as paredes da casa bem como acabado com todo o café da dispensa.  
                    Misteriosamente minha coluna não reclamou e após um banho revigorante, saí com a cachorra para tomar café na rua.  A previsão de chegada dele era no fim da tarde o que me dava tempo para preparar a recepção. Passei no mercado, comprei guloseimas, ajeitei a casa, perfumei tudo, fiz comidinha, imaginei mil vezes como o receberia, como o encheria de beijos, como faria amor com ele.
            Tão logo o sol começou a baixar no céu ele tocou a campainha. Meu coração quase pulou pela boca. Abri a porta correndo e de pé vejo ele, bem mais magro, bem mais envelhecido, e ao beijá-lo senti a febre. E assim nossa primeira noite foi no hospital, no isolamento, com suspeita de gripe aviária, já que ele tinha acabado de chegar do oriente.
           - Vem, deita aqui comigo. Estou com saudades do seu perfume.
             E assim, apertados numa cama hospitalar, sentindo os braços dele em volta de mim, adormeci tranquila. Tudo estava no seu lugar. 

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A arte de cozinhar

                    Cozinhar é muito mais do que apenas seguir receitas, sendo uma arte como diz o clichê. Já dizia a minha mãe que o verdadeiro cozinheiro era aquele que era capaz de fazer uma refeição apetitosa com o que tinha na geladeira. Sim, claro! Mas acho que mesmo nessa situação tem que se ter o dom de saber como combinar os ingredientes para que resultem em quitutes saborosos.
                  Só quem cozinha sabe o quanto alimentar é divino e conhece o prazer que dá ver as pessoas se deliciando com a sua criação, por mais simples que ela seja.
              Talvez seja por isso que as mães de família continuem cozinhando apesar da falta de reconhecimento explícita. Afinal quem elogia diariamente a refeição feita com tanto carinho?
                     Tudo na minha vida chegou de forma inusitada e há alguns anos tive um grupo de amigas composto por uma viúva, duas separadas, duas solteironas e eu que se reunia uma vez por semana para fofocar e relaxar. Éramos todas donas de nossos próprios narizes e tínhamos uma vida profissional estressante. Já lá pela quarta-feira a troca de e-mails começava a bombar! Aonde iríamos na sexta, nosso dia de sbornia? E assim fazíamos nossa terapia anti-estresse em bares, restaurantes, compras no shopping, shows, teatro, sempre regado de muita conversa e risadas.
             Numa noite qualquer dessas estávamos num restaurante quando um senhor de sotaque português bem acentuado veio ser galanteador em nossa mesa. Normalmente a gente ria muito e botava o incauto para correr. Cada uma de nós tinha seu motivo para achar que nossos encontros eram mais interessantes que qualquer papo furado, qualquer cantada barata, mas o portuga era muito simpático e divertido e acabou jantando conosco.
                  Acontece que por esse tempo estava começando essa moda de padarias que não vendem apenas pão, mas que servem acepipes, pequenas refeições, guloseimas em geral e nós conseguimos como uma brincadeira, até mesmo um certo desafio, um patrocínio para experimentarmos as tais padarias “gourmet” de Sampa e fazermos uma crítica ou resenha sobre elas para um guia de alimentação que esse senhor português editava. Nossas reuniões de pauta eram divertidíssimas já que quase matávamos o coitado de desespero com a profusão de assuntos tratados ao mesmo tempo. Pertinentes ou não ao tema da pauta, nós discutíamos sobre tudo e todos tão rápido e numa lógica que só nós entendíamos e que o lusitano não conseguia nos acompanhar.
               A verdade é que nós mal pisávamos numa cozinha no nosso dia-a-dia e faltava-nos conhecimento e experiência para criticar, já que depois de umas 4 ou 5 visitas as resenhas estavam sem graça, superficiais, repetitivas. Daí que tive a ideia de tomarmos aulas de culinária. A Wal morava numa casa cinematográfica num condomínio às margens da Anhanguera e tinha uma cozinha gourmet à beira da piscina que nunca mais foi usada desde que ficou viúva. Com a anuência delas contratei um professor para ministrar as aulas aos domingos.
             Como eu não consigo ser séria escolhi como instrutor um estudante do último ano do curso de gastronomia do SENAC, um moreno alto, de 22 aninhos, musculoso, bundinha redondinha ... Até hoje me lembro da cara das minhas amigas ao vê-lo. E rio, rio muito!
               Nem preciso dizer que foram aulas divertidíssimas, principalmente depois que o professor descobriu que a gente ladrava, mas não mordia. Aí sim que ele relaxou e entrou na nossa brincadeira.
              Durante dois anos tivemos aulas onde aprendemos a diferenciar aromas, temperos, texturas e eu me descobri cozinheira passando a curtir reunir os amigos em casa para serem minhas cobaias, já que desenterrei os cadernos de receitas das minhas avós e da minha mãe. Isso me levou a mais uma viagem interior, uma vez que trouxe à tona lembranças de um tempo em que passava as férias escolares com minha avó fazendo panetones para o natal e pães para o dia-a-dia, o que fez voltar à memória cheiros e sensações há muito perdidos. Não é só música que nos traz lembranças, os aromas também!
                       O bom de saber cozinhar é que você aguça seus sentidos e um passeio pelo mercadão vira uma viagem por sensações. Ali tenho predileção pelas barracas de especiarias, pois afinal é o tempero que cria o prato. E assim como no filme Chocolate, a gente acaba seduzindo os comensais através do aroma, do tempero.
                     Seja como for, dominar as panelas abre portas, gera assunto, admiração, agrega pessoas, facilita abordagens, enfim, muitas coisas acontecem ao redor de uma mesa! Sem contar que por mais que as mulheres se tornem independentes e modernas, os homens ainda esperam que elas saibam cozinhar e assim ainda hoje é possível agarrar um marido pelo estômago!






        

Baile literário

                 Olho a folha em branco e sei que preciso escrever. Bom, precisar não preciso de verdade, não é caso de vida ou morte de certo. Todavia tenho me obrigado a aprontar um texto toda semana para a aula. Uns saem bons, outros nem tanto, mas não falhei uma semana sequer até agora. Acho que sou capaz de escrever sobre qualquer tema, embora alguns sejam mais difíceis de achar o tom certo. Contudo dar título já são outros quinhentos.
                 Como gosto de ouvir as leituras! O grupo está ficando afiado, cada qual criando sua identidade literária o que me faz crer que se misturássemos os textos e apenas uma pessoa os lesse conseguiríamos saber, pelo jeitão da história, sua autoria.
                 Eis que esta semana minha inspiração sumiu e parece que até nisso sou diferente dos outros. Enquanto as pessoas aproveitam suas fases pessoais em baixa para fazer suas grandes obras, eu empaco.  Mas voltando à crônica semanal, desta vez entrei em parafuso com o baile que ela está me dando. Sobre o quê escrever? Tenho feito um esforço enorme para me adequar aos temas propostos onde quase todos me obrigam a voltar a um passado que já visitei e revisitei em anos infindáveis de terapia. E é justamente aí que reside minha dificuldade porque acredito piamente que quem gosta de passado é museu! Ora, levei anos para aprender a olhar para frente e agora me recuso olhar para trás! Além disso, meus problemas hoje em dia são outros e não consigo mais ver conflito no que vivi, já que passei a régua, fechei a conta, fui!
                Assim resolvo ir buscar inspiração no Braga, segundo os críticos, os entendidos, um mestre cronista. Li a primeira, a segunda, na terceira o incômodo foi quase insuportável, na quarta larguei o livro. Maldito Gilson Rampazzo! Em pouco menos de um ano ele conseguiu me tirar de minha suprema ignorância, aquela mesma que me dava o prazer da leitura. Não consegui saborear o tema das crônicas, já que as repetições de ritmo de frase são mais que evidentes. Será que são propositais? Será que imprimem uma espécie de estilo aos textos dele? Infelizmente não consegui identificar isso. Outra coisa é o desleixo com o vocabulário já que vi a palavra motorneiro repetida quatro vezes no mesmo parágrafo. Inacreditáveis quatro vezes! Na hora escutei a voz do Gilson chamando a atenção para esse fato e ri muito imaginando um encontro entre os dois. Num dos textos não havia parágrafos, noutro a pontuação era duvidosa. Novo baile! E agora? Como me inspirar com esses textos? Como me desligar da forma e me ater ao conteúdo? Volto ao Braga e num esforço hercúleo começo a prestar atenção à história, passando batido pelas repetições.
               Só assim descubro o valor das crônicas dele, já que são o registro de fatos comuns de grande valor histórico até.
               Desta forma, com as crônicas dispostas em ordem cronológica, vou passando por uma verdadeira aula de história através dos costumes descritos em seus textos. Viajo na simplicidade dos tempos remotos, onde condes passeavam pelos parques, o samba descia o morro e invadia as casas das madames, os bondes andavam a toda pela cidade e aí fico imaginando o que seria essa alta velocidade, 30 km/h? Tempos onde a malandragem maior consistia em andar de bonde sem pagar.
                    Quebro a cabeça e sei que poderia escrever sobre a seca da cidade, a falta de água, a chuva de gelo surpreendente que possibilitou às crianças fazerem bonecos. E as manifestações? A copa? A greve de ônibus? Tudo isso daria um relato importante para a posteridade, mas não consigo encaixar na lista de temas propostos.

                     E lá vou eu olhar a lista de novo. Nossa como tem galinha nesta lista! Que fixação seria essa? Será que posso falar de uma porca que não conseguia parir? Ou do almoço com carne de gambá? Galinha de estimação? Grande coisa, já que tive muitas. Agora jegue de estimação aposto que ninguém teve! Pronto! Acabo de me encher de ideias! Mais uma vez os animais me salvaram. Fim do baile literário! ‘Bora pegar outra folha em branco...

O sorvete



                                          - Hmmmm, já? Só mais 5 minutos... 
                                          - Vamos, senão a gente atrasa e perde o começo!
                                          Ainda dormindo tento fazer meus neurônios funcionarem a fim de me lembrar onde iríamos em plena segunda-feira. Sim, só poderia ser segunda-feira, por que aos domingos acordo quando meus olhos abrem sozinhos. Isso é lei lá em casa. Sem sucesso em conseguir me lembrar, desperto num susto assim que escuto o falatório das crianças.  Meu Deus! Eles estão aqui?! É algum feriado e eu não me lembro?
                                           A porta do quarto abre e os meninos anunciam quase em coro:
                                         - A gente fez o café!
                                         Totalmente perdida, olho suplicando alguma resposta.
                                          - Vamos, Zizi, a gente vai perder a hora da missa!
                                             Missa?! Sim, duas vezes ao ano sou obrigada a acompanhar a família nesse ritual e a primeira delas era hoje: domingo de ramos!
                                             Com o relógio marcando 8h da manhã, me arrasto para fora da cama. Absurdo levantar de madrugada para falar com Deus! Certo é o Gilberto Gil e como ele, tenho de ficar a sós para falar com Deus! Mas a humanidade é louca por um ritual, né? E os domingos de ramos em casa seguem ritual próprio: café da manhã em família, ida à missa das 10h, almoço em algum restaurante da cidade e finalmente o ócio. Entretanto este domingo foi diferente e já no café da manhã os trigêmeos de 13 anos vem com uma novidade: querem ir ao cinema à tarde com os amigos em seu primeiro programa sem os pais. Acho que o choque não foi tão grande porque na semana anterior eu tinha dado o primeiro batom à bebezinha do papai, o que já havia causado um mal estar pela inevitável certeza de que os pequenos já não eram tão pequenos assim. Apesar da severidade e rigidez com que educa os filhos, meu marido é paizão, participa de tudo, sabe de tudo, descreve cada filho como são, com suas virtudes e suas limitações. E por ele, eles jamais cresceriam, viveriam sob suas asas para o resto da vida! Um pai pinguim! Claro! Na sociedade dos pinguins a mãe bota os ovos e o pai os choca e cuida até serem independentes. Rio demais ao ver a relação do meu pinguim ruivo com os filhos, que apesar de terem receios quanto às reações do pai, é com ele que acabam se abrindo.  
                                     “Vamos ver!” foi o desenrolar sonoro da cena, assim como a consequente cara fechada dos meninos.
                                     Já à mesa do restaurante, quando todos já estavam empolgados com as conversas, ele começou o interrogatório:
                                    - Aonde vão? Que filme vão ver? Que horas? Quem vai?
                                    Pronto! Essa era a deixa para programar a tarde tão esperada.  
                                    À hora combinada deixamos os três na porta do shopping e assim que eles entraram nos entreolhamos e ele me perguntou:
                                    - E agora?  Vamos ver um filme também?
                                    - Claro que não! Vamos para casa esperar eles ligarem. Que coisa! Até parece que é a primeira vez que você passa por isso!
                                     - Os tempos são outros hoje e eu também sou outro! 
                                     Já em casa a fera não tem sossego! Não conseguiu nem tirar a sonequinha sagrada depois do almoço de todo domingo.  Confesso que eu também não estava completamente à vontade e diante de tamanha angústia fiz o convite:
                                       - Vamos tomar um sorvete? Um daqueles enormes cheio de melecas doces que demoram um século para serem feitos e comidos?
                                    É claro que fomos ao mesmo shopping dos meninos e ao entrarmos quase demos de cara com eles e seus amiguinhos. Tal qual super detetives, os seguimos por um tempo até entrarmos na sorveteria para escolher o sorvete, o maior, o mais cheio de gostosuras. 
                                       À medida que íamos afogando nossas preocupações na enorme taça de sorvete que dividíamos, discutíamos sobre o fato dos meninos serem tão distraídos que nem perceberam nossa presença e de como atentá-los para este fato parando nós mesmos de prestar atenção em volta, nem mesmo nos demos conta de que os três estavam às gargalhadas na mesa ao lado.  
                                      - Eu disse que o papai ia seguir a gente! Ele fez isso com os outros irmãos!
                                    E assim os três vieram se juntar a nós, já querendo dar uma bocada no nosso sorvete.
                                    - Ei! Esse sorvete é nosso! Vocês não tem outro lugar para tomar sorvete? Vão, vão andando! Só voltem aqui na hora de ir embora!
                                 - Mas pai!
                                 E assim que saíram ele se vira para mim e diz:

                                 - Só me faltava ter de dividir esse sorvete com eles! 

Cachorrão


                            Ao lado da minha casa tem um prédio desses antigos, sem elevador, apenas três andares. Logo no primeiro andar morava um casal de meia idade muito discreto quanto à sua vida pessoal, mas deveras indiscreto quanto à vida dos outros. Com o apartamento de frente para a rua, da varanda ela registrava todos os acontecimentos da vizinhança. Sempre vestida de forma simples, chinelinho de dedo, cabelos meio desgrenhados, meio rechonchuda, mas pronta a dar uma receita de tira-manchas caseiro ou um segredinho para incrementar alguma receita simples, tal como colocar uma pitada de sal no achocolatado para realçar o sabor do chocolate, ela era o estereótipo vivo de uma dona de casa. Chegava a ser muito engraçada a avidez dela pelas notícias, talvez porque passasse o dia sozinha, apenas com a companhia da TV – para fazer um barulhinho, como ela mesma dizia. O marido, sujeito alto, sempre de terno com camisas de colarinhos impecáveis, era bonachão, sempre pronto a uma piada. Toda vez que ele me encontrava dizia estar com dor lombar e perguntava se eu tinha um “remedinho” para o cachorrão, dando uma piscadela em seguida. Ríamos e cada qual seguia seu rumo. Sempre ao anoitecer ela saía para por o lixo fora, um saquinho de supermercado ao dia, para poder ter motivo de ir cumprimentar o pasteleiro que fica ao lado e trocar fofocas.
                                - O senhor soube do casal do 21? Ele tem outra! Passaram a noite discutindo!
                                - Por acaso ela é uma morena bonita, de cabelo comprido e ele um clarinho sempre de boné?
                               - Isso mesmo!
                                -Ihhhh, mas a senhora não sabe! Tem um rapaz que toda quarta-feira à tarde chega aqui, pede um pastel com coca-cola e liga prá ela. Ela demora um pouco, mas desce e eles saem juntos... deve ser caso de chifre trocado!
                               E assim eu me divertia pescando uma fofoca aqui e outra ali enquanto abria vagarosamente o portão de casa. Afinal quem não gosta de uma fofoca?
                              Vez ou outra ela me pegava no portão e eu, por educação, conversava um pouco, sempre dirigindo a conversa a fim de pedir-lhe algum conselho quanto à limpeza de alguma sujeira difícil ou alguma sugestão de receita para o jantar, já que ela era boa de arrancar algum fato que poderia virar manchete da radio fofoca do pedaço e por isso todo cuidado era pouco!
                             Tão logo ela desistisse de conseguir material a meu respeito, passava a soltar as histórias ouvidas ou presenciadas a partir de sua varanda. E eu olhava aquela mulher à minha frente, com sua figura tão cheia de boa vontade, tão solícita, tão Madre Tereza, e uma boca tão invejosa, tão maldosa, tão venenosa que corpo e boca pareciam não pertencer à mesma pessoa! Ninguém, absolutamente ninguém, escapava de seus comentários maledicentes.
                              Raras eram as vezes que o casal estava junto. Quando isso acontecia o marido se fazia surpreso com as indiscrições da mulher.  
                             Certo dia, eu vinha subindo a rua a pé quando vejo um carrão parar bem na porta do prédio. Por conta da distância, dos vidros escuros e da iluminação fraca da rua, só consegui perceber que um casal se amassava dentro do carro. Pouco tempo depois, quando eu já estava quase perto da minha casa, o carro arrancou e foi embora. Fiquei pensando na premência daquele amasso para que o casal tivesse parado só por aquilo. Ri e já de fronte ao meu portão, pronta para abrí-lo, vejo o carrão na esquina de cima, quando o vizinho saltou dele todo feliz e começou a vir a pé com uma sacolinha plástica na mão. Quase morri de susto quando olhei para o outro lado e vi a fofoqueira na porta do prédio com cara de poucos amigos.
                               Maldito carteiro que enfia as revistas e envelopes grandes por debaixo do portão ao invés de colocá-los na caixa de correio apropriada, impedindo que se consiga abrí-lo com rapidez, já que a correspondência acaba travando o mesmo.
                             - Você veio a pé? – ela perguntou secamente.
                               - Mais ou menos. Saltei antes e passei na padaria. Olha, o pão tá ainda quentinho...
                             - Cachorro mentiroso!
                              Só tive tempo de empurrar com toda a força o portão e entrar já que ela, de posse de uma vassoura, passou a enxotar o marido a vassouradas não sem antes desferir um punhado de xingamentos a queima roupa.
                              A vizinhança toda apareceu na rua para assistir e de certa forma se vingar da juíza local dos bons costumes.

                              O certo é que no dia seguinte bem cedo um caminhão de mudanças parou na frente do prédio e quando o marido apareceu lá pela hora do almoço só encontrou o apartamento vazio. Nem as roupas dele ela deixou! Nunca mais tivemos qualquer notícia do casal, só suposições. Uns diziam que a tal amante era muito mais jovem e rica, outros, que a tal moça era na verdade uma filha ilegítima e alguns ainda juravam que se tratava de um travesti... 

Banheiro

- Não vou mesmo! Sua filha me detesta, morre de ciúmes e talvez até tenha razão já que você anda trabalhando demais, viajando demais, enfim negligenciando demais atenção aos seus filhos. Não é só de coisas materiais que eles precisam! Esta é uma boa oportunidade para você passar dois dias sozinho com eles. Tenho muito que fazer aqui, não vou sair, no máximo pego um cineminha com a Vera amanhã à noitinha. Vai e curte seus filhos. Vai ser bom para todo mundo!
                E dando por encerrada aquela discussão, entrei no banheiro e tranquei a porta, embora em casa todas as portas fiquem sempre escancaradas. Portas trancadas significam outra coisa: que o assunto foi encerrado, que poderá ser retomado em outra ocasião, mas não mais naquele momento. É um ponto final ou no mínimo um ponto e vírgula. Como são incríveis os diálogos sem palavras que os casais criam entre si!
                O bater da porta da frente, num misto de raiva e contrariedade, era a minha deixa para sair do banheiro e começar meu fim de semana repleto de obrigações. Ao girar a chave, ela falseou. Girei-a ao contrário e ela fechou mais uma volta. Voltei o movimento e ela abriu uma volta e parou.
                 - Meu Deus! Não é possível! Só me faltava essa! – penso enraivecida.
                  Tentei o processo todo de novo, uma, duas, três vezes e nada!
                  Calma, Karin, assim você vai quebrar a chave! Respira fundo, calma e ... nada!!!!!!!!!!
                  Tão logo fucei o armário e achei um frasco de talco, enchi a fechadura do mesmo e de novo fechei mais uma volta e retornei desta vez chacoalhando a porta e o pior aconteceu: quebrei a chave!
                 Nestas horas não dá para ser delicada e pensar em gritar “Nossa! Agora a situação ficou realmente complicada e não vejo uma solução cabível para sair dela...” É fudeu mesmo! E com PH que como diz meu amigo Aristides com PH é um fudeu de responsa, daqueles que fudeu mesmo e não tem jeito nem conserto! Daqueles que só resta tentar remediar e olhe lá!
                      E agora? O celular está na sala. Também quem leva celular no banheiro? Só doente, viciado, neurótico. Que pena que sou sã! Bom, o negócio é esperar. Ele deve ligar para avisar que chegou bem ao destino. Quando não atender, ele vai ligar mais umas duas vezes até começar a se preocupar e ligar para a minha irmã, para a Vera, para minha prima mais velha, enfim, botar a família e os amigos mais chegados em polvorosa até que alguém resolva vir até aqui e aí estarei salva!
                      O bom de morar num bairro comercial é que não se tem vizinhos à noite e nos finais de semana. Nada de churrascada de carne de gato na laje ao som de funk, nem choradeira de animais deixados para trás nas viagens de fim de semana dos patrões, nem brigas familiares ou indiscrições. Por outro lado, numa hora dessas, não há a quem recorrer.
                       Finalmente ouço o celular e não era uma chamada, mas o som de mensagem no Whatsapp. Pelo tempo deve ser ele querendo avisar que chegou e “puxar conversa”. Essas modernidades são boas porque evitam a impulsividade, dão tempo para a gente esfriar a cabeça antes de responder.
                        Mas e agora? O que ele vai pensar já que não responderei ao seu recado? A gente não brigou de fato ou brigou? Mas que ele saiu bravo, ah, isso saiu! Ihhhh, isto vai feder!
                        Como já era noite quase madrugada, resolvi tentar dormir um pouco. Assim quem sabe no dia seguinte alguém ou alguma solução apareceria.
                        No meu cubículo de 2mX2,5m não havia muito espaço para uma cama king size feita de toalhas. Ao me deitar vejo o banheiro sob outra perspectiva, a da visão das frestas sob os armários e a possibilidade de inúmeros insetos viverem ali.                                   Inseticida! Sempre tenho um spray qualquer no banheiro.
                         Espirro por tudo e...
                         Isso sua anta! Cof, cof... Você é loira mesmo! Cof, cof... Agora você morre intoxicada aqui dentro! Pronto resolvido!
                          Diante da torneira da pia pensando em tomar um pouco de água para limpar a garganta, o pensamento vai longe de novo:
                          Caramba! Tomar dessa água, sem filtrá-la? E ela vem da caixa e nem a lavamos este ano! Deve estar cheia de contaminantes! Nossa, Karin, só você para pensar nessas coisas numa hora dessas! Bebe a água e depois toma vermífugo e antibiótico se for o caso!
                            Ao deitar-me novamente, vejo uma aranha agonizando e bato o olho na pequena janela do banheiro totalmente aberta.
                          E se entrar uma barata voadora por lá? Talvez seja bom fechá-la, mas e se ficar sem ar? E agora? Melhor entreaberta, assim o ar entra e a barata não pode entrar em voo direto, dando-me tempo de espirrar inseticida nela antes de ela me atacar. Que monstros são essas cucarachas!
                            Quem disse que dormi? Passei a noite vigiando a janela de spray em punho. De manhã, ainda sonada, começo meu ritual: lavar o rosto, escovar os dentes e... Iria para a cozinha tomar meu remédio da tireoide em jejum e enquanto espero o efeito, faria o café, daria comida às cachorras... Ih! As cachorras! Ai meu Deus! E agora? Quem vai alimentá-las nos próximos dois dias? E a água? Tenho de encher a vasilha delas duas vezes ao dia. Sem comida a gente aguenta até uma semana, mas sem água nem dois dias! Não tem a menor cara de que vá chover e com esta história de dengue, não há nada que possa reter água no quintal... Fudeu! De novo!
                          Ô meu Deus! Será que consigo cutucar alguém por telepatia? Bom, vamos ao que interessa: abrir a porta! Olhando os armários: nossa! Preciso tirar o pó de dentro deles e fazer uma arrumação! Quanta coisa que poderia jogar fora! Por que não começar a limpeza agora, já que tempo é o que tenho de sobra? E assim um bom tempo se passou, o lixinho do banheiro lotou e a empreitada me colocou em mãos uma pinça e uma caixa de grampos. Para o Mc Gyver isso seria suficiente, já para mim...
                           Usando a pinça consegui tirar o toco de chave, com um grampo tentei girar a fechadura e nada! E se tentasse empurrar a lingueta para dentro? Hmmm, poderia dar certo! Com a pinça e um grampo enfiados no vão entre a porta e o batente, faço força, suo, xingo muito e consigo trazer a lingueta para trás apenas um estágio, além de ferir meu dedo que agora sangra. Ai que dor! Onde botei os band-aids do Bob esponja mesmo?
                              Nisso já era hora do almoço de um dia escaldante onde o banheiro fechado virou sauna e as cachorras, já famintas e provavelmente já sem água, arranham a porta choramingando ao me ouvir ali dentro. Ensinei tantas coisas a elas como sair da piscina pela escadinha para que não morressem afogadas se caíssem nela na casa antiga, a subir escada de pintor se precisassem fugir de um incêndio, a não comer nada que não fosse servido em suas vasilhas a fim de prevenir envenenamentos ... Por que não as ensinei a usar um telefone? Mancada! Das grandes!  Como resolver o problema da água? Já sei! Coloco o banquinho sob a janela, subo e começo a chamá-las. De pronto elas aparecem. Enfio a mangueirinha do chuveiro p/ fora, abro a água e... Elas saem correndo! Tomara que quando a sede apertar elas tomem a água mesmo fora de sua vasilha habitual.
                          O estômago começa a incomodar. Fome! Encho-me de água e melhoro. O que fazer aqui dentro para não entrar em desespero? Bom, posso tingir o cabelo que está precisando mesmo e depois tomar um banho bem demorado e refrescante. E assim mais um bom tempo passou.
                          Enrolada na toalha resolvi lavar a minha roupa que estava ensopada de suor e tentar dar água para as cachorras mais uma vez. Podia vê-las por debaixo da porta deitadas na frente da mesma, guardando minha desgraça. Coitadas! Quanta fidelidade!
                         Até onde iria isto? Será que não faço falta para ninguém? Ninguém estranhou ainda meu sumiço? Ninguém tem nada para me contar, nenhum motivo para me ligar? Nossa! Estou sozinha! Ninguém se preocupa mesmo comigo!
                          A noite chegou de novo e só pensei que deveria estar no cinema com a Vera. Aliás, ela sabia que ele iria viajar com os meninos, porque não me ligou? Outra que não se preocupa comigo! Que raio de amiga é essa?
                          Um barulho vem da cozinha. As cachorras rosnando e latindo... Espera! Elas estão latindo e rosnando uma para a outra... Meu Deus! Só faltava elas se pegarem! Gritei com elas, bati na porta para fazer barulho e elas pararam. O que poderia estar acontecendo na cozinha? Ah, já sei! O saco novo de ração que acabei não guardando no quartinho... Elas devem estar rasgando o saco para comer. Menos mal! Mais uma vez encho a barriga de água e tento dormir. Desta vez adormeço, exausta e com o dedo doendo prá caramba!
                            Domingão de sol e calor escaldante. Lembro das cadelas e subo no banquinho. Nem precisei chamá-las, já que elas estavam lambendo o chão ainda úmido. Botei a mangueirinha do chuveiro para fora. Coitadas! Que sede! Realmente elas comeram a ração. Já o meu estômago dava pontadas! Encher de água já não estava dando mais resultado. Mas espera! Fuço o lixo e acho um comprimido de magnésia bisurada vencido há mais de um ano que havia jogado fora na limpeza. E agora? Isso pode melhorar muito a dor de estômago, mas tá vencido... Bom como a diferença entre remédio e veneno é a dose será que se eu mastigar só um pedaço não vai fazer mal? Melhor não!
                           Günther chegará só à noite. O que fazer até lá? Tem mais roupa para lavar, mas roupa lavada com sabonete fica tão esquisita na hora de vestir. Melhor não! Fazer uma limpeza de pele? Fazer as unhas? Fazer as sobrancelhas? Dar uma caprichada nos pés? Isso! Há muito não tenho um dia de beleza!
                             Durante horas limpei a pele, arranquei pelos indesejáveis, cortei unhas e cutículas, lixei os pés, pintei unhas... e o estômago já berrando! Ao final do tratamento de beleza, tinha ânsia de vômito pela dor de estômago. Fome maledeta! Como será que as pessoas da África fazem? Que horrível esta sensação! Fome dói! Não se trata só de privar o organismo de elementos essenciais, de se sentir fraco. Ela dói fisicamente mesmo!
                               Encima da bancada da pia vejo o comprimido. Tiro-o da embalagem, olho para ele demoradamente, cheiro-o e como não achei nada de perigoso, pelo menos a olho nu, mastiguei a metade como se saboreasse um bife e bebi muita água para diluir o veneno, caso houvesse algum.
                               Como uma coisa tão antiga, da época do meu avô, podia trazer tanto alívio?! Nossa! Que santo remédio! Quem sabe não lanço uma dieta a base de magnésia bisurada? Aposto que nem a clínica Mayo já pensou nisso!
                                Um sentimento de solidão se apoderou de mim. Dois dias neste cubículo e ninguém deu por minha ausência. Mas deixa estar, camarão! Deixa eu sair daqui! A via tem duas mãos! Sempre!
                                E esse ser que vive comigo? Será que levou minha falta de resposta para o lado negativo e está fazendo birra? Será que não passou pela cabeça dele que eu poderia estar em dificuldades? Que poderia ter tido uma queda, um derrame, morrido? Ai que ódio! Por que sempre eu é que me preocupo com os outros? Se a situação fosse o contrário, ele não teria ficado preso nem um dia porque mesmo brigada eu iria querer saber o que estava acontecendo! Droga! Odeio ter de cobrar as coisas dos outros! Ainda não sou santa o suficiente para fazer as coisas sem esperar retorno! Espero sim ser tratada com a mesma atenção que dispenso ao outro!
                                 Nisso, o abrir da porta da frente e a festa das cachorras me tiram dos meus pensamentos. Quem seria, já que nem era a hora do almoço ainda?
                                - Quem está aí? Tô no banheiro!
                           - O que houve? Por que você não respondeu as mensagens?
                                 - Estou presa! A chave quebrou! – disse secamente.
                               E abrindo a porta com a chave reserva, ele me pergunta:
                              - Você está aí há dois dias?!
                               - Sim! Logo que você saiu quebrei a chave! Onde você estava? Por que não me ligou? Por que não se preocupou comigo?
                              - Mas eu voltei antes!
                               - Não interessa! E seu tivesse morrido? Hã! E seu eu tivesse morrido????????????


Novos tempos

Novos tempos

                    Feliz da vida e precisando matar o tempo, entro numa livraria e compro logo as 200 crônicas escolhidas do Rubem Braga. Já na cafeteria anexa, percorro com os olhos todo o salão e como uma águia procura sua caça, anseio por uma mesa sossegada, tranquila, quando vislumbro um terraço com mesas estilo art noveau rodeadas por um jardim meio sonso, sem flores. De pronto escolho um canto isolado ao fundo, com uma única mesa ao lado ocupada por uma moça absorta em sua leitura. Isso! Esse é o lugar! É aí que vou fazer hora, desfrutando da natureza, do silêncio e do Braga.
                      Tão logo me sento, o garçom vem me trazer o cardápio que corro com os olhos e como nada me apetece peço apenas um café, duplo para durar mais.
                      Com certeza deveria ter pedido um chá, pois o maldito café foi a deixa para o meu mais novo chapa destrambelhar a língua e não parar mais de falar sobre cafés, açúcares, adoçantes, paladares, preferências por doces ou salgados, e assim, sem pedir, sem querer, fiquei sabendo que ele não gosta de doces desde criança e toma seu café sem açúcar, puríssimo!
                       Mal me recosto na cadeira, retiro o livro da sacola e o abro, a moça ao lado para de ler e saca um celular da bolsa.
                       Eis que meu inferno começa, já que ela engata um papo sem fim sobre a organização de uma festa de arromba.
                            - A Joana vai? Mas se ela for, não dá para convidar a Gabi. E se a Gabi não for, João, Marcelo, André, Josiane e Marcos também não vão...
                            Finalmente decidem a lista de convidados, que pelos meus cálculos devia ter umas 150 pessoas. Aí fiquei pensando se Joana e Gabi se encontrariam no meio dessa multidão ou se Gabi e o resto fariam tanta falta assim. Olho para o lado e meço-a de fio a pavio tentando adivinhar a faixa etária: não mais de 23, 24 anos.
                                - Ah, André, seus amigos bombadões não! Olha, na minha experiência a gente tem de contratar seguranças mesmo. Tem de pagar porque se não pagar o pessoal não aparece...
                                Perdi-me devaneando sobre a tal experiência da moça. Afinal quantas festas ela poderia já ter organizado?
                                A palavra “puxadinho” me traz de volta ao mundo real e me faz largar outra vez a leitura para tentar entender o que seria esse tal puxadinho que  segundo ela deveria estar repleto de mulher bonita.
                                 Pela descrição cheguei à conclusão que o tal puxadinho nada mais era que um mezanino e a festa, conforme fui imaginando segundo o que ela falava, seria um circo só faltando a lona para tal.  
                                 E assim larguei o Braga de lado, pedi mais um café e fui viajando na conversa alheia, já que a voz dela era tão estridente e alta que não me deixava concentrar na leitura. Sem contar os absurdos que fui escutando a ponto de só poder agradecer a Deus por não ter tido filhos, mas ao mesmo tempo rezando para que até a hora dos gêmeos começarem a frequentar essas festas que o mundo seja outro.
                            Definitivamente jamais me acostumarei aos novos tempos. Contudo, o que mais sinto falta dos tempos antigos, como se eu fosse muito velha, é a discrição.
                          Hoje em dia a tecnologia simplesmente matou a discrição. E a delicadeza também. É, certamente o mundo mudou e eu não percebi o momento exato dessa mudança. Só vejo que a toda hora as pessoas escancaram suas vidas em público, quer seja por meio de conversas ao celular onde nem tem a delicadeza de falar baixo, quer seja, pela internet, onde usam sites como o facebook para escancarar suas vidas com imagens e tudo.
                           Já não me encaixo mais neste mundo. Quero o silêncio, a discrição, bem como a balbúrdia dos meus pensamentos. Não entendo essa sanha de fazer estranhos participarem de sua vida sem querer. A tal moça não me perguntou se eu queria fazer parte da sua conversa. Simplesmente me invadiu com ela. Não teve nem a delicadeza de perceber que eu estava tentando ler. Será que ela aceitaria minha opinião sobre a festa ou se sentiria invadida ou ofendida?
                            A janela há muito deixou de ser indiscreta e passou a ser uma porta escancarada, muito menos interessante.                                                       

                           Cruz credo! Que mundo! Para que eu quero descer! 

Ipod, Itunes e outros bichos

                    O interfone toca.
                    - Pois não?
                   - Correio! Sedex!
                  Inacreditavelmente recebi um presente de uma empresa americana de pesquisas de mercado. Na verdade fui convidada a responder, durante este ano todo, uma série de pesquisas sobre a rotina de um serviço veterinário no Brasil e ao final da maratona recebi meu regalo: um ipod.
                   Que maravilha tecnológica seria essa? Abri a embalagem, uma caixinha do tamanho da de um anel, e não acreditei que uma coisinha dessas tocasse música. Nessa hora me senti jurássica. O engraçado é que não me senti assim quando vi meus primeiros cabelos brancos, nem quando as primeiras rugas apareceram, nem mesmo na semana passada quando achei a primeira mancha de velhice no dorso da minha mão.
                  O sentimento surgiu logo depois dos pensamentos que tive ao olhar para aquele trocinho:
- Vai dar trabalho para fazer funcionar.
- Melhor dar para alguém que saiba como usar.
- Vou me irritar por não conseguir fazer funcionar e vou ficar pior ainda quando um dos meninos de 12 anos resolver a coisa bem rapidinho.
                    Nossa! Isso sim é que é velhice! Lembrei-me da minha mãe que preferia nem ter coisas novas para não ter de aprender a usá-las.
                     - Mas mãe, é fácil! Olha...
                     - Filha, ando economizando minha mente. Uso-a só para coisas realmente importantes e esse aparelho aí não é necessário. Ouço bem meus discos na vitrola. Além do mais, o móvel é muito bonito, embeleza a sala e se tirá-lo daí o que vou colocar no lugar? E o que vou fazer com meus discos que adoro?
                       - Mas mãe, você precisa se esforçar. Desse jeito o austríaco te pega!
                       - Não seria uma má ideia, já que seu pai morreu!
                       E assim ríamos muito com a preguiça mental dela.
                        O telefone me faz voltar ao tempo presente. Buscando atualizar-se das ocorrências do dia, meu marido sempre liga na hora do almoço quando não conseguimos almoçar juntos.
                        - Separe os Cds que você gosta que quando eu chegar eu carrego para você.
                        Tudo bem que ele trabalha com isso, mas do jeito que falou só faltou me passar o atestado de incapaz. Não me deu nem a chance de tentar! Isso me fez querer reagir e resolvi fazê-lo funcionar antes do meu marido cibernético chegar em casa.
                         Lá no fundo da caixinha havia um manual de instruções. Menor que uma bula de remédio, tinha uma figura bem didática explicando a função dos botões existentes, além de apenas 4 diretrizes: baixar e instalar a última versão do programa necessário no meu computador, conectar o ipod ao computador, configurar o ipod usando as instruções que apareceriam na tela e finalmente, enquanto fazia tudo isso a bateria estaria sendo carregada.
                         Simples, não? Não mesmo! Entrei na página indicada e comecei a baixar o tal programinha. No começo foi tudo certinho. A faixa verde indo e vindo, me hipnotizando, até que parou. Ai meu Deus! Por que comigo nunca dá certo? E agora? Sigo o ensinamento do maridão que diz para desligar tudo e começar de novo quando algo não dá certo? Repentinamente a faixa verde destrambelha e vai e vem velozmente, inúmeras vezes. Ufa! Baixou! Primeira diretriz completada! Vamos à segunda. Conecto um cabinho de menos de 10cm de comprimento ao aparelho e depois ao computador. Isso deveria abrir o programa baixado e fazer aparecer um monte de instruções na tela. Deveria, mas nada aconteceu!
                      Nessa hora a Zefinha passa na porta:
                      - Tá tudo bem Dona Karin?
                      - Não! Essa porcaria não funciona!
                      - Ih, isso aí é de queimar os miolos mesmo! Por que a senhora não espera o Seu Gunthi chegar? Ele arruma isso rapidinho prá senhora!
                      - Zefinha, você não tem o que fazer não?
                      Entro no facebook e posto meu problema. Uma amiga japonesa responde prontamente me falando o que fazer: clique aqui, vai abrir ali, arraste p/ lá ... Ai que inveja desses orientais!  
                      - Mas, amiga, não abre nada! Só acende uma luzinha que segundo o manual é da bateria.
                      - Ih, então não sei. Posso ir aí, mas só depois do natal...
                      Ai que droga! Por que essas coisas acontecem comigo? Será por conta da minha resistência a ficar dependente dessas novas tecnologias? Já não me lembro de cor do número de telefone de ninguém. Agora tudo se resume à agenda no celular. Se um dia esse treco der pau não vou poder ligar para mais ninguém! Nem agenda de papel tenho mais! As máquinas dominarão a terra mesmo!
                       - Tá ocupado?
                      - Não. O que houve?
                      Depois de ouvir o que estava acontecendo ele deu uma gargalhada:
                      - Süss, é simples! Você não conectou o cabo corretamente. O pino tem 3 linhas, não? Cada linha liga uma coisa. Você tem de empurrar até o final.
                      Ai que mico! Mico não, orangotango! Ao empurrar o cabo até o fim uma janela se abriu na minha tela: Bem vindo ao Itunes!
                      Depois disso foi tudo bem fácil, bem didático. Quando ele chegou à noite, eu já tinha colocado dez Cds dentro dessa pequena maravilha e nem tinha chegado à metade da capacidade dele.
                       Agora ando feliz da vida com meu ipod pendurado na roupa. Fazer supermercado, compras no varejão, andar em shopping cheio e enfrentar uma fila qualquer tem outro colorido, o da música. Com a mente inundada pelas melodias que adoro, vejo o mundo de outra forma. Bendita tecnologia!