quinta-feira, 18 de junho de 2015

Táxi!

Dos tempos de criança, filha de imigrantes fugidos da guerra que aportaram por aqui sem eira nem beira, ficou-me a impressão de que para andar de taxi, há que se ter muito dinheiro.
Engraçado como certas opiniões e vivências nos marcam para uma vida toda.
Hoje tudo depende, ou melhor, dependendo do lugar que se vá e o horário, uma corrida de taxi pode sair muito mais barato que ir de carro, já que quando se computa a gasolina gasta, o custo do valet/flanelinha/estacionamento e o tempo gasto no trânsito uma vez que em certos horários os taxis podem andar nas faixas de ônibus, vale mais a pena pegar um carro de praça.  
Chamar um carro de aluguel também ficou mais fácil, já que atualmente é só sacar meu celular, pedir um e menos de 5 minutos depois ele está na minha porta, com o aplicativo berrando: “táxi!”.
Por outro lado, hoje em dia está cada vez mais difícil achar um sem a ajuda do aplicativo, já que parece que os taxis vazios não existem mais. Que dificuldade pegar um na beira na calçada, esticando o braço como se fazia antigamente.
Isso me lembra um mico que passei na Avenida Paulista. Amo esta avenida, mas quando venta... Foi lá que aprendi na pele o que é um vento encanado.
Que ventania fazia aquele dia! Ela corria pela avenida inteira fazendo voar tudo que encontrava pela frente, era palpável! Tão palpável que com seus dedos ágeis e fortes arrancava bonés, perucas, papéis das mãos dos incautos e com esses mesmos dedos, enchia olhos de fuligem e areia, dava tapas nas faces fazendo acordar as sinusites adormecidas. Que gelo!
Eu vinha caminhando na beirada da calçada, contra o vento, tentando preservar os olhos e brigando com um casaquinho de lã, a fim de vesti-lo. Contudo a ventania era tanta e tão forte que atrapalhava a colocação do casaco. Além disso, trazia no ombro uma bolsa bem pesada.
Já muito irritada com a luta, tremendo de frio, a um dado momento equilibrei o casaco ao vento e com um movimento brusco e forte tentei enfiar o braço livre da bolsa na manga do casaco. Acontece que o vento era tão forte que tirou o casaco da posição e meu movimento brusco e raivoso, além da bolsa pesada, me tiraram o equilíbrio de maneira que o casaco voou longe.
Nesse mesmo momento um taxi freou bruscamente ao meu lado e logo abriu a porta para que eu entrasse.
- Moço, não vou pegar taxi.
- Como? Você fez sinal! Eu brequei e quase causei um acidente.
- Eu? Sinal? Não moço. Tava vestindo meu casaco!
- Casaco? Que casaco?
- O que o vento levou!
- Mocinha que brincadeira é essa?
- Moço, tô falando a verdade. O casaco voou!
- Ora bolas! Cada uma! Fala a verdade, menina! Você fez sinal e agora se arrependeu, né? Vê se não faz mais isso, viu?
E assim saiu bravo, louco da vida comigo. E eu fiquei ali atônita, envergonhada, sem casaco.
Será que quanto mais a tecnologia avançar para nos facilitar a vida, mais nos tirará de situações pitorescas como esta?
O que meus netos contarão para seus filhos?
- Eu apertei o botão e ele não funcionou... Daí peguei meu outro dispositivo, liguei um cabo e ele consertou o mal funcionamento do botão em 2 milissegundos. Podia ser mais rápido, eu sei, mas ainda não consegui a nova versão desse aplicativo.
Ai que saudades de quando as portas dos taxis eram amarradas com cordas! A vida era mais simples, honesta e engraçada

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Saudosismo

Ando saudosa, lembrando-me dos tempos de antes. De certo é a velhice chegando já que gente nova não tem o que relembrar? Claro, mente ociosa é de lascar! Cada bobagem que a gente começa a pensar quando não tem o que de fato pensar!
Ocorre que não consigo impedir que certas lembranças invadam minha mente nas ocasiões mais comuns do mundo.
Hoje ao pegar um táxi, bem quando ouvi o barulho do destravamento elétrico da porta acionado pelo motorista, uma imagem se colocou na frente de tudo que tinha na mente naquele momento: os táxis que costumava pegar com minha mãe quando eu era criança.
Meus pais tinham uma loja onde meu pai consertava rádios e TVs que funcionavam a válvulas. Meu Deus! Quanta curiosidade eu tinha com relação ao armarinho onde meu pai guardava as frágeis válvulas, cada qual em sua caixinha de papelão grosso, posicionada deitada, formando pilhas e mais pilhas nas prateleiras, com seus códigos, modelos e marcas bem à vista. Claro que só podia olhar de longe já que segundo meus pais elas custavam muito caro e a quebra de qualquer uma delas resultaria num prejuízo grande, além de um possível atraso na entrega do serviço. Nossa! Só agora me dei conta que vi nascer o transistor poucos anos depois e que por conta disso, pude ajudar minha mãe a esvaziar o armarinho das válvulas agora inúteis.
-Posso pegar mesmo, mãe?
- Pode! Só cuidado para não quebrar porque esse vidro corta feio.
Mas voltando nesse tempo, lembro-me de que fui filha única até os 6 anos de idade numa época em que babás eram artigos de luxo e só existiam nas casas dos ricaços. Por isso, mamãe me arrastava para todos os lugares que ia. Na loja tinha um colchonete embaixo da escrivaninha onde eu dormia todas as tardes, abraçada à cadela da raça pastor alemão que tínhamos, enquanto fingia estar numa cabana.
E, claro, quando minha mãe ia à Rua Santa Ifigênia comprar as tais válvulas e outras peças de reposição, eu ia junto.
Sempre pegávamos o ônibus na frente de casa e descíamos na Av Ipiranga quase na esquina da Santa Ifigênia. Mamãe já sabia quais lojas ir e com uma lista repleta de números e marcas comprava-as para os aparelhos que papai consertava.
- A senhora não quer levar mais de uma desse modelo? Tá saindo muito e com certeza a senhora vai economizar viagem.
- Não sei não. O senhor pode aguardar um minuto? Vou ligar e perguntar para meu marido. Eu tenho uma ficha aqui, obrigada!
Depois de escolhidas, as caixinhas eram empilhadas formando um cubo enorme e o homem amarrava tudo com um barbante desses de algodão formando quase uma rede para segurar todas juntas e ainda fazia uma alça para mamãe poder carregar tudo. Essa era a hora em que eu me maravilhava toda e ficava atenta tentando acompanhar os movimentos rápidos do homem com o barbante.
De lá íamos à pé até o Mappin, onde mamãe comprava aquilo que havia visto na visita anterior e já com a devida autorização de papai, ela orgulhosamente escolhia e mandava embrulhar para presente.
- Presente para quem, mamãe?
- Para nós! Para nossa casa!
A essa altura eu já estava muito cansada e acabava me sentando no degrau da escada sem muito interesse pelo pacote, já que durex não me chamava a atenção.
- Vamos filha, será que a moça do elevador sabe onde fica a lanchonete?
Essa era a deixa para aquele momento particular que só ela e eu tivemos na vida: nossa parada na lanchonete do Mappin.
Ela pedia um café e eu um sorvete com cereja no topo. De lá íamos a pé até a Praça da Sé onde pegávamos um táxi, que sempre era um fusca, sem o banco da frente e que o motorista amarrava uma corda na porta pela qual ele a puxava para fechar tão logo nos acomodávamos no assento.
Muitas décadas depois perguntei a ela porque andávamos tanto para pegar um táxi:
- Filha, táxi naquela época era caro. De onde você acha que eu tirava o dinheiro para o nosso café e sorvete?
Já acomodada no táxi, o barulho da trava elétrica me traz de volta à atualidade.
- Hoje parece que vai esquentar, né?
Isso é exatamente o que não mudou. Naquela época, a da ditadura, não se falava de nada sério com desconhecidos. Hoje em dia, época da violência gratuita, não se fala nada além de sobre o tempo.
- A senhora viu a passeata para Jesus?
Definitivamente esses passeios de táxi com mamãe me deram uma bagagem de experiências muito importante para os dias de hoje e assim saio de qualquer saia justa na boa.
- Não, não vi. Do que se trata?
- É, se fosse bandalheira a TV estava cobrindo o tempo todo, mas como é coisa de Deus...
- O senhor tem razão, por isso não vejo mais TV. Só sem-vergonhice mesmo!
- Eu tenho a TV do RS Soares, a senhora sabe, lá só passa programação boa...
Volto-me para a janela buscando me perder de novo nas lembranças dos fuscas e suas portas amarradas com uma corda.

Será que é por isso que ando tão saudosa? 

segunda-feira, 1 de junho de 2015

O pacote

- Tia, eu não tenho irmãos, então os meus filhos não vão ter tia, né?
- É sim, Viktor.
- Mas tia, e quem vai levar eles no dentista como você me leva?
- Ela é minha tia!
- E daí, quem vai morar com ela sou eu!
- Não pode! Você não é filho dela! Seu burro!
- Meu pai vai casar com ela e eu vou morar com ela! Cabeção!
- Ei, meninos, chega de briga!
- Mas mãe, ela é minha tia!
- Viktor, ela é sua tia porque é minha irmã e quando casar com o pai dele vai ser madrasta dele.
- Nãooo, não quero! Ela não vai ser minha madrasta porque ela é legal!
- Karin, posso falar uma coisa com você?
- Claro!
- Então, não sei como... meu pai vai me arrancar o couro...
- O que foi? O que tá acontecendo?
- Acho que a minha namorada tá grávida...
- Você já falou com sua mãe?
- Não! Não adianta. Ela vai mandar eu me virar com meu pai...
- Não dá mais! Ele é muito teimoso! Nada do que eu digo ele aceita. Então pra quê que eu fui estudar? Vou cair fora! Vou arranjar um emprego e ele que se vire!
- E você acha que com patrão estranho vai ser diferente? Que você vai chegar com seus diplomas e todo mundo vai dizer amém? Aposto que se você mostrar para seu pai que do seu jeito também pode dar certo, ele vai aceitar. Mostre que você sabe do que está falando. Por enquanto você só mostrou insegurança, quando quer a aprovação dele. Larga a barra da calça dele e assuma os riscos. Seja profissional.
- Alô, Zizi? Eu machuquei o meu dedinho. Você pode vir aqui na minha casa curar ele?
- Periquito, sua mãe já não pôs remédio? Agora tem de esperar o remedinho curar...
- Não, Zizi, minha mãe não é doutora. Eu quero você!
- Amor, eu sou doutora de bichinho...
- Ué! Mas eu não sou seu periquito?
Dia das mães. O que é uma mãe? Quem pare? Quem cria? Quem ajuda a cuidar?
Nunca quis esse ofício, por não me achar capaz, tanto que nunca pari. Mas a vida a gente não controla, nem programa. Assim encarei um sobrinho até os cinco anos de idade, com direito a troca de fraldas, papinhas até ir fazer a adaptação no jardim da infância e não satisfeita, essa mesma vida me arranjou seis filhos do coração. Cada um numa idade, numa fase de aprendizagem e questionamentos, como que me cobrando de uma só vez a experiência que eu deveria ter se tivesse tido um filho.  
E lá se foram sete anos, o meu pânico sumiu, já tiro de letra os conflitos de cada fase e aprendi a aceitar e curtir o dia das mães especial que tenho com eles sempre no sábado que antecede o domingo oficial das mães, porque mãe é sobretudo amor e amor é o que temos de sobra entre a gente.

- Zizi, a gente ainda é o pacote que veio junto com o papai? 

Blue Eyes

Depois de esperar meses por uma mesa num restaurante badalado e muito recomendado, finalmente o dia chegou.
Claro que nesses dias a lei de Murphy sempre se impõe e a correria para não perdermos a hora e consequentemente a reserva foi grande.
O restaurante era deslumbrante, com uma decoração moderníssima, de muito bom gosto, assinado por um arquiteto mundialmente famoso.
Nossa mesa ficava bem junto a um janelão de onde podíamos ver a cidade e suas luzes e do outro lado tínhamos a vista do salão todo.
Ainda esbaforidos, acelerados pela correria, nos sentamos e enquanto meu marido se desvencilhava de um telefonema de negócios, meu olhar logo foi percorrer o salão em busca de alguma história. Aliás, esse é meu esporte favorito: observar os outros, tentar adivinhar quem são, o que fazem ali, inventar histórias. Os meninos adoram participar, mas maridão já não, talvez porque tenha se habituado a manter o olhar do estranho no ninho em paragens distantes, muitas vezes perigosas, uma vez que porque ele viaja o mundo, já se viu em meio a guerras, revoluções, ataques terroristas, explosões de violência impensáveis como a invasão e ataque de um elefante a um restaurante paquistanês. Portanto, seu olhar é sempre de alerta, procurando qualquer sinal de violência iminente.  
Enquanto ele examinava a carta de vinhos, fiquei olhando em volta, reparando em expressões e trejeitos, que é de onde se pode extrair alguma idéia dos acontecimentos quando não se pode ouvir a conversa ou não se entende o idioma.
Nesse flanar do meu olhar, dei de cara com um par de olhos azuis, cristalinos como o mar, que me remeteram a outros olhos azuis bem famosos, os de Frank Sinatra. Só que estes me fitavam lânguidos e os do Sinatra nunca vi ao vivo. Estremeci, logo parei de olhar e displicentemente voltei-me ao meu marido mais para saber se ele havia visto a troca de olhares do que para saber se já havia escolhido o vinho.
Pedidos feitos, iniciamos nosso bate papo como duas comadres, entremeado por mais duas ligações de negócios, até que a comida chegou.
- Aquele cara não para de olhar pra você!
- Cara? Que cara?
- O que está sozinho na mesa ao lado, de olhos azuis...
- Tá brincando! Tá olhando nada!
- Tá olhando sim! Aliás, como é mesmo a brincadeira que você faz com as crianças? Adivinhar a história das pessoas? Pois bem, qual a história desse aí?
Enquanto comíamos comecei a tecer uma história sobre um homem que estava perdido numa cidade estranha, sem memória, com muito dinheiro no bolso. Morto de fome, havia resolvido entrar naquele restaurante para comer. O restaurante não lhe era estranho, parecia que o conhecia bem, e assim em busca de lembranças começou a encarar as pessoas...
- Não sei não. Mas acho que essa história não combina com ele.
- Mas eu não acabei ainda!
E continuei contando que na verdade o homem era um mafioso russo...
- Peraí! Russo???? Moreno assim?
- Claro! Ele foi criado pelo chefão da máfia russa depois que seus pais foram mortos pela própria máfia...  Fica frio que vai ter o tiroteio e as explosões de que você gosta. Eu chego lá!
E assim fomos jantando e rindo com a história que estava sendo criada ali sobre um mafioso russo, muito sedutor, desmemoriado, que fazia seus negócios sujos naquele restaurante.  E conforme a história evoluía, ríamos mais e vez ou outra olhávamos para o homem que continuava a me encarar, agora descaradamente.
Mesmo sem mirá-lo diretamente, sentia o seu afrontamento. Assim que pediu o café, meu marido se levantou para ir ao banheiro, deixando-me sozinha à mesa. Por longuíssimos 10 segundos hesitei em olhar para o homem, não queria encorajá-lo a qualquer atitude, mas ao mesmo tempo fiquei indignada com a insistência dele, mesmo na frente do meu marido. Sorte que o Günther se diverte com essas situações. A única vez que o vi indo para cima de alguém foi quando o irmão cearense de uma amiga minha me deu “um cheiro” no pescoço. 
A verdade é que não resisti, sentia o olhar dele me queimando e assim que dei uma espreitadela, ele se levantou.
Pronto! E agora? Seria um escândalo? Como me desvencilhar do inoportuno? Mas que chatice! E o Günther? Ai meu Deus! Socorro!!!!!!!!
Praticamente em pânico virei-me para o janelão fingindo estar vendo a paisagem noturna e rezando para o homem ter se levantado para ir embora ou ao banheiro.
Que nada! Com o canto do olho percebi-o parado de pé me fitando.
-Querida, sabia que preconceito é feio?
E com um gestual mais afetado ainda continuou:
- Você e aquele seu bofe ficaram me gozando a noite inteira! Isso não se faz!
E com as duas mãos na cintura arrematou:
- Eu achei o seu colar de jade di-vi-no, não pude tirar meus olhinhos dele a noite inteira. Pena que esteja no pescoço de uma pessoa tão feia. Pronto falei! Passar bem!
Boquiaberta, sem saber o que dizer ou fazer, só consegui seguí-lo com os olhos enquanto ele se dirigia para a saída até que vi meu marido voltando morrendo de rir.
- Ele era gay?!
- Mas é claro que era! Mafioso russo?! Nem em mil anos!