segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Cenas cotidianas

Espero o sinal de pedestre abrir para poder atravessar a rua. Do lado oposto vejo uma mulher subindo a via falando ao celular tão absorta que tropeçou num desnível da calçada, mas nem assim largou o aparelho.
Do ponto pouco abaixo parte o ônibus que vai subindo paralelamente à aluada do celular para dobrar a esquina logo a seguir.
E não é que a infeliz, distraída , rindo ao celular, não respeitou o sinal de pedestres fechado e seguiu em frente literalmente se jogando na frente do ônibus? Morte instantânea!
Do meu lado da rua seguro o grito e assisto impotente à cena toda.

Pela filmagem de uma câmera de segurança vejo dois homens entrarem armados numa pizzaria.
Logo em seguida um rapaz, distraído por sua conversa ao celular, vem andando pela mesma rua. Ao passar pela porta da pizzaria, provavelmente ouviu as ameaças dos ladrões e parou com o celular na mão, atônito, aluado, usando seus últimos segundos para tentar entender o que acontecia ali. Não deu tempo! Morreu com um balaço.  

Através da janela do ônibus parado no semáforo, vejo no carro ao lado duas mocinhas com os vidros escancarados a fim de amenizar o calor do verão. Uma delas, a passageira, falava ao celular intermediando a conversa entre a motorista e quem quer que seja que estivesse do outro lado da linha.
Uma moto com dois homens para ao lado e o garupa tira um revólver de dentro da jaqueta, apontando para a moça e exigindo o celular. Nisso o ônibus arranca e só ouço o estampido do tiro.


Começo a ter saudades do primeiro telefone que apareceu lá em casa: preto, pesadão, com um disco central e ligado à tomada por um cabo revestido de pano também preto. Este só matava se jogado contra a cabeça de alguém. 

Chupa-cabra

Outro dia estava me lembrando de fatos ocorridos nos meus tempos de roça. Dentre os vários causos, guardo com carinho os fantásticos, de assombrações.
Não me lembro com exatidão de quando aconteceu este, já que o tempo anda se embaralhando para mim, mas sei que foi bem na época do surgimento da lenda do chupa-cabra, que era um ser meio bicho, meio gente, com corpo escamoso, olhos grandes, dois pequenos chifres e dentes caninos enormes para chupar todo o sangue de sua vítima.
O fato é que por essa época começou a aparecer galinhas e pequenos animais mortos, aparentemente sem sangue e com apenas dois furos no pescoço. Lógico que fui chamada para dar minha opinião e sempre consegui achar uma razão plausível para as mortes, com exceção de um caso.
Havia na região uma propriedade dita mal assombrada. Segundo a rádio fofoca local, ou seja, as conversas no boteco e mercearia do seu Zé Coveiro, moravam na casa um casal sem filhos, onde ele trabalhava no roçado e ela cuidava dos afazeres domésticos. Como a casa não tinha luz elétrica, depois do jantar, os dois iam para a sala para ouvir o velho rádio de pilhas enquanto ela se punha a bordar sentada numa cadeira de balanço e ele pitava um cigarrinho de palha debruçado na janela. Com o passar dos anos, a senhora morreu e como o senhor se recusou a sair da casa, um sobrinho veio morar com ele. É claro que o sobrinho trouxe modernidade e assim reformou a casa, instalou luz elétrica e começou um negócio de granja, criando frangos para abate, o que propiciou a contratação de empregados que acabaram por morar no sítio também.
Não raro os empregados diziam ver a senhora balançando em sua cadeira e ouvir barulhos estranhos na casa, criando assim a fama de casa mal assombrada.
Certo dia bem cedo recebi o telefonema do rapaz e quando cheguei lá vi mais de 350 animais mortos. Todos tinham dois furos no pescoço e aparentemente não tinham nenhum sangue no corpo. 
De pé no meio do galpão comecei a procurar uma resposta para aquela cena. É claro que foi um ataque de algum predador e com essas características o mais provável seria um ataque de um bando de morcegos, mas era preciso identificar por onde eles entraram. Por isso comecei a inspecionar o galpão a fim de encontrar frestas, buracos, fendas, por onde eles poderiam ter passado. Entretanto o galpão era milimetricamente fechado a fim de impedir a entrada de outras aves, sobretudo andorinhas e rolhinhas, evitando a contaminação da criação. A única porta de entrada e saída era completamente vedada a fim de impedir a entrada de ratos, contudo ao examiná-la melhor vi marcas, como de unhas ou garras que arranharam toda a sua superfície pelo lado de fora. Fora isso, cada olhada ao redor acabava com alguma esperança de explicação.
A história já tinha corrido como rastilho de pólvora por toda região e antes mesmo do almoço, já havia uma multidão na porta do galpão a fim de ver o ocorrido para criar sua própria versão do causo.
De forma muito incômoda eu era a autoridade ali e todos me fitavam esperando o veredito.
Desta vez o embate entre a crendice e a ciência estava difícil, de maneira que recolhi algumas aves mortas e mandei para análise na USP. Assim ganharia por baixo uns 15 dias para dar alguma resposta e teria tempo para investigar melhor o ocorrido.
Só que a vida sempre apronta comigo e cerca de 2 ou 3 dias depois tive de voltar à propriedade por conta do surto de diarreia dado nas novas aves que substituíram as mortas e enquanto estava lá uma chuva torrencial despencou alagando a única saída do sítio. Como a água não baixava e a noite já havia caído, vi-me obrigada a pernoitar na casa mal assombrada.
Lá tudo era simples, limpo, mas sem os cuidados e toques femininos. Logo depois do jantar, sentamo-nos na sala a fim de prosear um pouco a respeito dos últimos acontecimentos e um barulho, como uma leve pancada ritmada, começou, mas os donos da casa não pareceram se incomodar.
- Esse barulho ... vem de onde? 
- Ah, a gente já desistiu de procurar. A verdade é que esse barulho só aparece neste horário e aparentemente não tem causa. A gente já nem liga mais.
Assim que decidimos ir dormir o barulho parou.
Já instalada numa cama de campanha no meio da sala, pensei ouvir uma voz feminina me desejar boa noite, mas como o cansaço era muito não dei importância e logo apaguei. Lá pelas tantas, acordei com um silvo, quase um uivo, horripilante, que acordou o resto da casa também.
Desta vez todos haviam ouvido o estranho grito e de pronto os funcionários estavam batendo à porta para formarem um grupo de caça ao chupa-cabras.
Logo alguns vizinhos também apareceram e num instante dois grupos de cinco ou seis homens, munidos de lanternas, paus, armas de fogo e facões, saíram à caça daquilo ou de quem ninguém nunca viu.
Fazia frio, a chuvinha fina não dava trégua e algumas mulheres e eu ficamos providenciando café quente e alguma coisa para dar de comer aos homens quando voltassem.
Logo que terminamos de montar a mesa e nos sentamos na sala para esperar pelos caçadores, a pancada ritmada voltou. Enquanto a mulherada falava sem parar e ao mesmo tempo sobre todos os assuntos possíveis, fui tentando seguir o barulho até que cheguei à conclusão de que ele vinha da parede onde a cadeira de balanço estava encostada. Será que havia algum cano de água? Cabo de energia elétrica? Num impulso inexplicável puxei a cadeira até do lado do sofá, mas não consegui me sentar nela.
Já estava amanhecendo quando os homens voltaram de mãos abanando. Graças a Deus, aquela noite infernal havia acabado!
Naquele mesmo dia à tarde a terra tremeu porque uma pedreira próxima explodiu uma série de cavernas, matando centenas de morcegos, constituindo um crime ambiental sem precedentes. Acontece que depois disso, não houve mais nenhum ataque do chupa-cabra. Além disso, o laudo da USP foi inconclusivo e o barulho ritmado parou desde que a cadeira foi desencostada da parede e colocada ao lado do sofá onde podia balançar sem bater em nada...



Se beber, não se deite!

O corpo principia a acordar, assim como a consciência começa a retornar, embora eu ainda estivesse de olhos fechados.
Caraca! Que dor de cabeça! Meu Deus! Que quarto é esse? Isso, Karin, enche o latão de tudo que é bebida e agora quero ver. Ou melhor, não quero nem ver!
Caramba! Quem é esse aí do lado? Cadê as roupas dele? Ai meu Deus! Cadê minhas roupas? Puta que o pariu!  Será que rolou alguma coisa? Não me lembro de nada! Assim sem me mexer muito começo a olhar em volta à procura das minhas roupas.
Já pensou se o cara acorda e eu tô assim?
Ui! Jesus me abana! Mas que bundinha, hein? Pena que não lembro de nada... será que vou lembrar?
Vixe, tá virando pra cá! Por favor, Deus, que ele não acorde, que ele não acorde! Não vou saber o que falar, o que fazer!
E fiquei quietinha, de olhos fechados, esperando o que viria a seguir.
Ufa! Tá dormindo!
Olho aquele rosto tentando buscar na memória saber quem era. Nada! Nem uma pista! Mas o cara é bonitão, rosto quadrado, barba de uns dois dias, peito com pelos. Sim porque homem sem barba e sem cabelo no peito convenhamos que é moleque ainda. Será que eu olho mais para baixo? Quando eu ia me imaginar pelada na cama com um estranho também pelado? Meu Deus! Como isso foi acontecer?
Espio com o rabo do olho. Nossa! Deve estar precisando ir ao banheiro porque se não for isso ... Caraca! Como não me lembro de nada?! Disso eu ia me lembrar! Ah se ia!  
Bom, no conjunto da obra penso que me dei bem porque o rapaz não é de se jogar fora. Logo me vem à mente a musiquinha: Moreno alto, bonito e sensual / Talvez eu seja a solução dos seus problemas / Carinhoso, bom nível social...
E agora? Saio correndo? Espero ver o que vai rolar? Afinal, pelada na cama com um cara também pelado falando do tempo é que a gente não ficou! Será que foi bom?  Camisinha! A porra da camisinha! Ai meu Deus! Tomara que um dos dois tenha sido responsável. Ele, né? Porque eu nem me lembro como vim parar aqui. Dizem que Deus protege os bêbados e as criancinhas... Ô de cima, conto com vc!
Já sentada na cama acho minhas roupas jogadas no chão entre o banheiro e a cama. Vou puxando devagarzinho uma das cobertas para me enrolar e assim ir pegando minhas roupas no chão. Afinal de contas só faltava o estranho acordar e dar de cara comigo na posição em que Napoleão perdeu a guerra!
Quando chego na porta do banheiro – nossa! – que fedor! O banheiro estava vomitado de fio a pavio! Daí que a visão desse inferno começou a avivar a minha memória: esse bolçado todo era meu!
Ai agora tá ficando mais claro! Festa da Leia, vim sozinha, combinada de encontrar com a Deinha na festa. É isso! A filha da mãe não apareceu, liguei, liguei e nem me atendeu! Já ia embora porque não conhecia ninguém quando a Leia resolveu me apresentar para algumas pessoas. Chaaaatas! Gente esquisita para caramba!
- Não vai embora, hein? – pediu-me a anfitriã. Assim fui ficando e bebendo, bebendo e bebendo. Ah, o barman era bonitão e fazia cada drinque! Pera! Como era a cara dele mesmo? Será que esse cara aí é o barman?
Nossa! Mas que lugar é este? Lembrei! Esse cara é o barman! A gente saiu da festa e veio para outra festa numa mansão, com um portão de ferro enorme e seguranças. Entramos pelos fundos, procurando pelo, pelo ... Marcos. Ou seria Mário? Não importa! Só pode ser aqui!
Nossa, que complicado! Como a gente veio parar neste quarto? Meu Deus! Será que tinha uma terceira pessoa aqui? Um ménage? Não! Nem em coma alcoólico eu toparia isso! Não pode ser!
Assim, fechei-me no banheiro e com a mangueirinha do chuveiro comecei a lavar tudo para poder usar.
Que delícia de ducha! Era tudo que eu precisava! Depois de uma xícara de café bem forte aposto que minha memória volta! Mas primeiro vou sair de mansinho deste lugar.
O grande problema é que a ideia do ménage não me saía da cabeça! Já ter feito sexo com um completo estranho era muito constrangedor, pensar num ménage então... Melhor ir embora rapidinho!
Nem bem abro a porta do banheiro e dou de cara com aquele monumento de pé, acordado.
-Você ainda está aqui?
- É, pois é. Mas já estou indo embora...
E coçando o saco ele retrucou:
- Você estava doidona ontem! Entrou aqui feito uma louca, botou os bofes para fora no banheiro, já saiu de lá arrancando as roupas e se enfiando na cama...
- É?
- Você não se lembra de nada, né?
- Olha, para dizer a verdade não. Você é o barman?
- Não!
- Não?! Cadê o barman?
- Sei lá! Já deve ter ido embora.
- Ai meu Deus! Eu não fiz isso! Eu não me lembro!

Completamente em pânico, saí correndo e agora nem queria mais me lembrar de nada... 

Presente Terapêutico

Depois de um ano todo num grupo de terapia, chegou o fim do ano e o clima de festas, levando a um fatídico amigo secreto.
É claro que depois de sete ou oito meses de terapia em conjunto já sabíamos ou deveríamos saber muito uns sobre os outros.
Na verdade a realidade não é bem assim. É incrível como cada um ouve aquilo que quer ou que pode. Isso me lembra de Paulo em uma de suas cartas aos Coríntios, onde ele diz que devemos ter cuidado com o que falamos e sempre imprimir nas palavras nossas melhores intenções e sentimentos, mas que temos de ter consciência de que quem vai ouvir, as ouvirá de acordo com os sentimentos que traz em seu coração.
Grande conhecedor da alma humana esse Paulo! As cartas dele são verdadeiros ensinamentos de bem viver e conviver. Basta esquecer o divino, o religioso, o fantástico, atrelado a seus escritos.
Daí que o dia chegou e cada um foi entrando com seu pacote de presente e seu pratinho de doce ou salgado para a confraternização. Engraçado como todos estavam meio apreensivos. Curiosamente todos tiveram dificuldades para comprar o presente e a terapeuta, mais rodada nessas experiências que catraca de ônibus, começou a sessão justamente pela troca de presentes.
Minha amiga secreta era uma cearense arretada, que tinha passado fome na infância, foi dada a uma família para ser criada, depois devolvida para a avó e por fim mandada para servir de babá de uma sobrinha, filha da irmã mais velha que já morava numa favela aqui em Sampa.
Hoje ela é casada com um homem rico, que vive de administrar a herança de vários imóveis recebidos de uma tia, sem precisar de um emprego formal. Com três filhos que faziam o que queriam, sem limites, e um marido viciado em cocaína que levou o filho mais velho para o vício, ela buscava forças para enfrentar sua vida.
É incrível como só o convívio descortina meandros que desconhecemos à primeira vista e ao final de alguns meses a vítima se torna vilão e vice-versa.
Que figura era a Ivone! Ivonilde na verdade. Não fazia o tipo perua faminta, pelo contrário, era cheinha, com curvas boas, cabelos longos e negros, além dos peitos siliconados que sempre ameaçavam pular fora dos tomara-que-caia habituais.
Apesar da situação econômica confortável ela se vestia como essas moças de periferia, com calças que pareciam costuradas no corpo ou saias que eram quase um mero abajur de perereca, além dos saltos sempre altíssimos, de preferência do tipo agulha.
Já eu era mais desleixada com meu modo de vestir do que agora e a minha preferência sempre foi por roupas confortáveis, mais do que tudo. Então, os jeans e camisetas básicas, além dos tênis eram uma constante.
E é aí que entra Paulo e sua observação da natureza humana porque eu acabei ganhando uma blusa horrorosa, super decotada na frente e que me deixava as costas toda de fora. Jamais usaria aquilo! Onde a Ivone estava com a cabeça por me dar uma blusa dessas? Que louca!
- Você não gostou, né?
- É bem diferente do que estou acostumada a usar, mas gostei sim. Agora no calorão de janeiro vai ser ótima!
Claro que na minha ideia aquela era a última sessão do ano, depois viriam 2 meses de férias e até fevereiro todos teriam se esquecido dos presentes.  Assim, a blusa ficaria esquecida em algum canto de gaveta até a limpa anual onde seria doada sem uso para algum bazar de caridade.
Ledo engano, pois assim que as sessões recomeçaram fui cobrada pelo uso da blusa.
- Você usou a blusa? Não gostou, né?
E foram tantas as cutucadas que tive de usá-la uma vez para ir à reunião.  Só que ao chegar lá, a roupa era tão incômoda, tão nada a ver comigo, que acabei falando na sessão.
- Mas se você tivesse me falado no dia, eu poderia ter trocado para você...
No final o episódio rendeu e acabei aprendendo muito a meu respeito, principalmente sobre a minha necessidade de agradar aos outros a qualquer preço e a minha incapacidade de dizer não.
Já a Ivone percebeu o quanto ela não ouvia e via os outros, vivendo num mundo próprio para fugir de seus problemas.  

Quanto à blusa, acabou nas mãos da filha da minha faxineira que precisava de uma roupa maneira para o baile funk do fim de semana.