segunda-feira, 1 de junho de 2015

Blue Eyes

Depois de esperar meses por uma mesa num restaurante badalado e muito recomendado, finalmente o dia chegou.
Claro que nesses dias a lei de Murphy sempre se impõe e a correria para não perdermos a hora e consequentemente a reserva foi grande.
O restaurante era deslumbrante, com uma decoração moderníssima, de muito bom gosto, assinado por um arquiteto mundialmente famoso.
Nossa mesa ficava bem junto a um janelão de onde podíamos ver a cidade e suas luzes e do outro lado tínhamos a vista do salão todo.
Ainda esbaforidos, acelerados pela correria, nos sentamos e enquanto meu marido se desvencilhava de um telefonema de negócios, meu olhar logo foi percorrer o salão em busca de alguma história. Aliás, esse é meu esporte favorito: observar os outros, tentar adivinhar quem são, o que fazem ali, inventar histórias. Os meninos adoram participar, mas maridão já não, talvez porque tenha se habituado a manter o olhar do estranho no ninho em paragens distantes, muitas vezes perigosas, uma vez que porque ele viaja o mundo, já se viu em meio a guerras, revoluções, ataques terroristas, explosões de violência impensáveis como a invasão e ataque de um elefante a um restaurante paquistanês. Portanto, seu olhar é sempre de alerta, procurando qualquer sinal de violência iminente.  
Enquanto ele examinava a carta de vinhos, fiquei olhando em volta, reparando em expressões e trejeitos, que é de onde se pode extrair alguma idéia dos acontecimentos quando não se pode ouvir a conversa ou não se entende o idioma.
Nesse flanar do meu olhar, dei de cara com um par de olhos azuis, cristalinos como o mar, que me remeteram a outros olhos azuis bem famosos, os de Frank Sinatra. Só que estes me fitavam lânguidos e os do Sinatra nunca vi ao vivo. Estremeci, logo parei de olhar e displicentemente voltei-me ao meu marido mais para saber se ele havia visto a troca de olhares do que para saber se já havia escolhido o vinho.
Pedidos feitos, iniciamos nosso bate papo como duas comadres, entremeado por mais duas ligações de negócios, até que a comida chegou.
- Aquele cara não para de olhar pra você!
- Cara? Que cara?
- O que está sozinho na mesa ao lado, de olhos azuis...
- Tá brincando! Tá olhando nada!
- Tá olhando sim! Aliás, como é mesmo a brincadeira que você faz com as crianças? Adivinhar a história das pessoas? Pois bem, qual a história desse aí?
Enquanto comíamos comecei a tecer uma história sobre um homem que estava perdido numa cidade estranha, sem memória, com muito dinheiro no bolso. Morto de fome, havia resolvido entrar naquele restaurante para comer. O restaurante não lhe era estranho, parecia que o conhecia bem, e assim em busca de lembranças começou a encarar as pessoas...
- Não sei não. Mas acho que essa história não combina com ele.
- Mas eu não acabei ainda!
E continuei contando que na verdade o homem era um mafioso russo...
- Peraí! Russo???? Moreno assim?
- Claro! Ele foi criado pelo chefão da máfia russa depois que seus pais foram mortos pela própria máfia...  Fica frio que vai ter o tiroteio e as explosões de que você gosta. Eu chego lá!
E assim fomos jantando e rindo com a história que estava sendo criada ali sobre um mafioso russo, muito sedutor, desmemoriado, que fazia seus negócios sujos naquele restaurante.  E conforme a história evoluía, ríamos mais e vez ou outra olhávamos para o homem que continuava a me encarar, agora descaradamente.
Mesmo sem mirá-lo diretamente, sentia o seu afrontamento. Assim que pediu o café, meu marido se levantou para ir ao banheiro, deixando-me sozinha à mesa. Por longuíssimos 10 segundos hesitei em olhar para o homem, não queria encorajá-lo a qualquer atitude, mas ao mesmo tempo fiquei indignada com a insistência dele, mesmo na frente do meu marido. Sorte que o Günther se diverte com essas situações. A única vez que o vi indo para cima de alguém foi quando o irmão cearense de uma amiga minha me deu “um cheiro” no pescoço. 
A verdade é que não resisti, sentia o olhar dele me queimando e assim que dei uma espreitadela, ele se levantou.
Pronto! E agora? Seria um escândalo? Como me desvencilhar do inoportuno? Mas que chatice! E o Günther? Ai meu Deus! Socorro!!!!!!!!
Praticamente em pânico virei-me para o janelão fingindo estar vendo a paisagem noturna e rezando para o homem ter se levantado para ir embora ou ao banheiro.
Que nada! Com o canto do olho percebi-o parado de pé me fitando.
-Querida, sabia que preconceito é feio?
E com um gestual mais afetado ainda continuou:
- Você e aquele seu bofe ficaram me gozando a noite inteira! Isso não se faz!
E com as duas mãos na cintura arrematou:
- Eu achei o seu colar de jade di-vi-no, não pude tirar meus olhinhos dele a noite inteira. Pena que esteja no pescoço de uma pessoa tão feia. Pronto falei! Passar bem!
Boquiaberta, sem saber o que dizer ou fazer, só consegui seguí-lo com os olhos enquanto ele se dirigia para a saída até que vi meu marido voltando morrendo de rir.
- Ele era gay?!
- Mas é claro que era! Mafioso russo?! Nem em mil anos!


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