quarta-feira, 10 de junho de 2015

Saudosismo

Ando saudosa, lembrando-me dos tempos de antes. De certo é a velhice chegando já que gente nova não tem o que relembrar? Claro, mente ociosa é de lascar! Cada bobagem que a gente começa a pensar quando não tem o que de fato pensar!
Ocorre que não consigo impedir que certas lembranças invadam minha mente nas ocasiões mais comuns do mundo.
Hoje ao pegar um táxi, bem quando ouvi o barulho do destravamento elétrico da porta acionado pelo motorista, uma imagem se colocou na frente de tudo que tinha na mente naquele momento: os táxis que costumava pegar com minha mãe quando eu era criança.
Meus pais tinham uma loja onde meu pai consertava rádios e TVs que funcionavam a válvulas. Meu Deus! Quanta curiosidade eu tinha com relação ao armarinho onde meu pai guardava as frágeis válvulas, cada qual em sua caixinha de papelão grosso, posicionada deitada, formando pilhas e mais pilhas nas prateleiras, com seus códigos, modelos e marcas bem à vista. Claro que só podia olhar de longe já que segundo meus pais elas custavam muito caro e a quebra de qualquer uma delas resultaria num prejuízo grande, além de um possível atraso na entrega do serviço. Nossa! Só agora me dei conta que vi nascer o transistor poucos anos depois e que por conta disso, pude ajudar minha mãe a esvaziar o armarinho das válvulas agora inúteis.
-Posso pegar mesmo, mãe?
- Pode! Só cuidado para não quebrar porque esse vidro corta feio.
Mas voltando nesse tempo, lembro-me de que fui filha única até os 6 anos de idade numa época em que babás eram artigos de luxo e só existiam nas casas dos ricaços. Por isso, mamãe me arrastava para todos os lugares que ia. Na loja tinha um colchonete embaixo da escrivaninha onde eu dormia todas as tardes, abraçada à cadela da raça pastor alemão que tínhamos, enquanto fingia estar numa cabana.
E, claro, quando minha mãe ia à Rua Santa Ifigênia comprar as tais válvulas e outras peças de reposição, eu ia junto.
Sempre pegávamos o ônibus na frente de casa e descíamos na Av Ipiranga quase na esquina da Santa Ifigênia. Mamãe já sabia quais lojas ir e com uma lista repleta de números e marcas comprava-as para os aparelhos que papai consertava.
- A senhora não quer levar mais de uma desse modelo? Tá saindo muito e com certeza a senhora vai economizar viagem.
- Não sei não. O senhor pode aguardar um minuto? Vou ligar e perguntar para meu marido. Eu tenho uma ficha aqui, obrigada!
Depois de escolhidas, as caixinhas eram empilhadas formando um cubo enorme e o homem amarrava tudo com um barbante desses de algodão formando quase uma rede para segurar todas juntas e ainda fazia uma alça para mamãe poder carregar tudo. Essa era a hora em que eu me maravilhava toda e ficava atenta tentando acompanhar os movimentos rápidos do homem com o barbante.
De lá íamos à pé até o Mappin, onde mamãe comprava aquilo que havia visto na visita anterior e já com a devida autorização de papai, ela orgulhosamente escolhia e mandava embrulhar para presente.
- Presente para quem, mamãe?
- Para nós! Para nossa casa!
A essa altura eu já estava muito cansada e acabava me sentando no degrau da escada sem muito interesse pelo pacote, já que durex não me chamava a atenção.
- Vamos filha, será que a moça do elevador sabe onde fica a lanchonete?
Essa era a deixa para aquele momento particular que só ela e eu tivemos na vida: nossa parada na lanchonete do Mappin.
Ela pedia um café e eu um sorvete com cereja no topo. De lá íamos a pé até a Praça da Sé onde pegávamos um táxi, que sempre era um fusca, sem o banco da frente e que o motorista amarrava uma corda na porta pela qual ele a puxava para fechar tão logo nos acomodávamos no assento.
Muitas décadas depois perguntei a ela porque andávamos tanto para pegar um táxi:
- Filha, táxi naquela época era caro. De onde você acha que eu tirava o dinheiro para o nosso café e sorvete?
Já acomodada no táxi, o barulho da trava elétrica me traz de volta à atualidade.
- Hoje parece que vai esquentar, né?
Isso é exatamente o que não mudou. Naquela época, a da ditadura, não se falava de nada sério com desconhecidos. Hoje em dia, época da violência gratuita, não se fala nada além de sobre o tempo.
- A senhora viu a passeata para Jesus?
Definitivamente esses passeios de táxi com mamãe me deram uma bagagem de experiências muito importante para os dias de hoje e assim saio de qualquer saia justa na boa.
- Não, não vi. Do que se trata?
- É, se fosse bandalheira a TV estava cobrindo o tempo todo, mas como é coisa de Deus...
- O senhor tem razão, por isso não vejo mais TV. Só sem-vergonhice mesmo!
- Eu tenho a TV do RS Soares, a senhora sabe, lá só passa programação boa...
Volto-me para a janela buscando me perder de novo nas lembranças dos fuscas e suas portas amarradas com uma corda.

Será que é por isso que ando tão saudosa? 

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